“Faço teatro para não ser massacrada”, diz Leonarda Glück, diretora transexual que leva furor da Selvática a SP com Iracema 236ml

A diretora, dramaturga e atriz Leonarda Glück - Foto: Leco de Souza

A diretora, dramaturga e atriz Leonarda Glück – Foto: Leco de Souza

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

A Selvática Ações Artísticas é um dos coletivos mais interessantes e proponentes do Brasil atual. Não tem medo de se colocar e de sacudir com a pasmaceira e o conservadorismo vigentes.

Sediados em Curitiba, estão com sede de dialogar com todo o País. Sua mais recente montagem, Iracema 236 ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara, aporta no próximo fim de semana na Funarte de São Paulo, após passar por Curitiba, Rio e Fortaleza [veja serviço ao fim]. No elenco, estão Patricia Cipriano, Stéfano Belo, Mari Paula, Ricardo Nolasco, Manolo Kottwiz e Simone Magalhães, diva incontestável da música e dos palcos.

Sob comando de tudo, assinando texto e direção, está Leonarda Glück, que além disso tudo também é transexual. Nesta entrevista exclusiva ao Site do Miguel Arcanjo, conta o desafio de viver de arte, fala sobre a questão de gênero e do preconceito que sofre por aí.

Mas Leonarda não é de esmorecer. Levanta a cabeça e segue firme e forte com seu teatro, para não enlouquecer. Sobre o Brasil atual, cujos políticos querem se meter até na família alheia, tem opinião certeira: “Nenhum deles sabe o que é família, o que é amor”. E demonstra preocupação com o futuro do País: “Ruinzinho do jeito que está, ele não vai muito para frente”. Sobre sua arte, diz, sem pestanejar: “Faço teatro para não ser massacrada”.

Leia com toda a calma do mundo.

Leonarda Glück - Foto: Triade Photos

Leonarda Glück – Foto: Triade Photos

MIGUEL ARCANJO PRADO — É difícil ser uma transexual no Brasil?
LEONARDA GLÜCK —
Não é fácil ser humano em geral no Brasil. Se for pensante menos ainda e se for transexual muito menos ainda. A educação básica, vinda tanto da família (que os religiosos fervorosos ultimamente tanto defendem) quanto da escola, não tem servido nem para decoreba e nem para inspirar sensibilidade, é dura, cruel, estanque, não se movimenta de acordo com o tempo, não propõe reflexão, não sugere a autocrítica e tudo isso junto gera uma bomba mais velada que a nuclear, mas não menos explosiva.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Deveria se tocar mais no assunto?
LEONARDA GLÜCK —
A transexualidade é um assunto que muito pouca gente domina ou mesmo tem parco conhecimento, os estudos de gênero (já antigos, vale lembrar) e toda a questão da transgeneridade humana ainda é um campo bastante nebuloso no Brasil. Aqui, muitas pessoas acreditam que podem “achar” o que quiserem sobre o assunto, que podem misturar suas crenças pessoais com “definições científicas” sem fontes, que podem mesclar o atual preconceito com a antiga piada do vovô, que, inclusive, podem destilar toda a sua ignorância sobre o assunto publicamente e tudo fica aparentemente bem: todo mundo posando de sabichão mas sem saber da missa nem a metade.

MIGUEL ARCANJO PRADO — E como é ser uma transexual dramaturga e diretora?
LEONARDA GLÜCK —
A arte salva, é nisso que eu acredito. O teatro salva. Quando você é transexual num país mal educado como o Brasil ser transexual pode ser uma experiência bastante enlouquecedora. Então, para não enlouquecer, eu decidi que como artista eu poderia escrever, fazer e dizer tudo aquilo que há dentro de mim.

Simone Magalhães, Mari Paula, Stéfano Belo, Ricardo Nolasco, Patrícia Cipriano e Manolo Kottwitz em Iracema 236ml: temporada em São Paulo - Foto: Tamíris Spinelli

Os atores Simone Magalhães, Mari Paula, Stéfano Belo, Ricardo Nolasco, Patrícia Cipriano e Manolo Kottwitz estão em cena em Iracema 236ml, peça escrita e dirigida por Leonarda Glück – Foto: Tamíris Spinelli

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por isso você faz teatro?
LEONARDA GLÜCK —
É por isso que eu trabalho com teatro no Brasil há 19 anos, para não permitir jamais que o mundo me massacre por eu ser como eu sou. É claro que quando comecei a trabalhar com teatro eu não sabia da definição precisa de “transexualidade”, mas eu já sabia, e sentia, que precisava fazer alguma coisa para não ser somente uma louca a mais nesse mundo. E aqui estou eu: sã e produtiva de uma maneira que a sociedade não espera de uma mulher transexual, sob nenhuma hipótese. São raras (para não dizer inexistentes) as mulheres transexuais que escrevem e dirigem para teatro, atrizes provavelmente há bem mais, mas se eu puder servir de inspiração para muitas delas, faço com orgulho.

Leonarda Glück em cena de La Lucha, apresentada em Montevidéu em 2014 - Foto: Alejandro Persichetti

Leonarda Glück em cena de La Lucha, apresentada em Montevidéu em 2014 – Foto: Alejandro Persichetti

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você já foi vítima de algum tipo de preconceito?
LEONARDA GLÜCK —
Certamente que sim. Primeiramente, na adolescência, quando eu achava ser “gay”, depois mais tarde, quando comecei a usar “roupas de mulher” e me maquiar, quando eu achava ser “travesti” e agora assumidamente mulher transexual, das poucas nesse país que conseguiram alterar juridicamente no registro civil o prenome e o sexo, é impossível eu não ter sido vítima de nenhum preconceito nessa vida. A simples equação matemática de “ter nascido homem” mais “transição” mais “resultado: mulher transexual” parece que te dá automaticamente todo o preconceito do mundo de presente. Da família, das escolas, das direções das escolas, dos amigos muitas vezes, dos amigos dos amigos, da faculdade, da direção da faculdade, das companhias de teatro, das pessoas que trabalham nos lugares por onde eu me apresento, a lista desse festival de ignorância é imensa

MIGUEL ARCANJO PRADO — E dentro da classe teatral também há preconceito?
LEONARDA GLÜCK —
Engana-se quem acredita que a classe teatral é plenamente esclarecida. A atriz Laura Cardoso disse há algum tempo atrás que é obrigação do ator ser culto, no que eu concordo plenamente com ela. Mas, veja bem, infelizmente, não só isso não corresponde à realidade como saber sobre transexualidade e diferenças entre as identidades de gênero estão totalmente fora do vocabulário de atores, diretores e gente de teatro, de cinema e de televisão no país inteiro, como também estão muitos Shakespeares, Janetes Clair e Ionescos. Uma lástima, um horror, uma patinação longa e demorada na imbecilidade humana. Espero que isso mude algum dia, mas, como dizia Tennessee Williams, a humanidade é uma grande esperança perdida, e eu tenho andado sem muita esperança em nosso país ultimamente.

Ricardo Nolasco e Patrícia Cipriano em Iracema 236ml - Foto: Tamíris Spinelli

Ricardo Nolasco e Patrícia Cipriano em Iracema 236ml: “Acho que nenhum deles sabe o que é família e o que é amor”, diz Leonarda Glück, sobre os deputados que querem impor um conceito de “família” repleto de preconceito – Foto: Tamíris Spinelli

MIGUEL ARCANJO PRADO — O que achou dessa história de os deputados decidirem em Brasília que família é só casal formado por homem e mulher com filho?
LEONARDA GLÜCK —
Eu acho que nenhum deles sabe o que é família e o que é amor. Nenhum deles conhece o significado verdadeiro de família e nem o significado verdadeiro de amor. Talvez porque nenhum deles tenha tido contato com nada disso. Estão “trabalhando” para produzir mais lixo burocrata para o país, que é justamente aquilo de que o país menos precisa. Estão fazendo um serviço à toa, em suma, porque embora dificulte a vida de muita gente essa decisão espúria, ninguém irá pautar sua vida por conta de uma deliberação tomada por um bando de deputados corruptos, ladrões e cuja fama fede mais que todos os curtumes da Arábia Saudita juntos, né?!? O nome disso é “papelão”, e político brasileiro adora um papelão em vez de trabalhar de verdade, como fazem os outros milhões de brasileiros por aí.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que vocês resolveram reinventar Iracema?
LEONARDA GLÜCK —
Eu escrevi essa releitura da Iracema de 1865, do José de Alencar, para meu trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Artes do Paraná, em 2004. Portanto este texto tem onze anos de idade e parece que agora ele está mais válido e fazendo mais sentido do que há onze anos atrás. O Brasil não aprendeu ainda com muitos dos seus erros, e parece que alguns o país sente um prazer especial em repetir. É por isso que eu e o coletivo de artistas da Selvática Ações Artísticas resolvemos montar o texto em uma versão multimídia, para ver se alguém aprende que essa história da Iracema do José de Alencar não dá certo no final. Pode parecer curioso que um grupo de artistas de Curitiba resolva tratar em cena de uma lenda que é oriunda do Ceará, mas eu não me sinto particularmente obrigada a falar somente de Dalton Trevisan (que eu amo, aliás) e Paulo Leminski porque são da minha terra. E, de mais a mais, Curitiba (e o sul como um todo) participa muito pouco das discussões que envolvem brasilidades, identidade e cultura brasileiras no cenário artístico nacional (falar da Operação Lava Jato, que está sendo levada em Curitiba não vale, porque a corrupção brasileira é um tipo de cultura menor entranhada no coração vagabundo brasileiro bem difícil de limpar), e é desse Brasil múltiplo, plural, nascente e morrente que nós queremos falar, e por isso estamos levando o espetáculo ao país todo.

Simone Magalhães e Stéfano Belo em Iracema 236ml - Foto: Tamíris Spinelli

Simone Magalhães e Stéfano Belo em Iracema 236ml: “Leitura curitibana sobre o País”, diz Leonarda Glück, a diretora e dramaturga do espetáculo da Selvática Ações Artísticas – Foto: Tamíris Spinelli

MIGUEL ARCANJO PRADO —  Por onde a peça já passou?
LEONARDA GLÜCK —
Por Curitiba, primeiramente, em 2014, com o apoio da Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba, pelo Rio de Janeiro, no Galpão Gamboa, teatro belíssimo do Marco Nanini na Gamboa, por Fortaleza, no Ceará, terra natal do José de Alencar, para onde fiz questão de levar o espetáculo e agora nossa próxima parada é na grande “locomotiva do país”, São Paulo, na próxima semana, na Sala Arquimedes Ribeiro, no Complexo Cultural da Funarte SP. É importante dizer aqui que a circulação do espetáculo está sendo feita através do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2014. Depois de São Paulo seguimos em novembro para Juazeiro do Norte, interior do Ceará, para apresentar o espetáculo na Mostra SESC Cariri de Culturas.

MIGUEL ARCANJO PRADO —  O que esperam dessa rápida temporada paulistana?
LEONARDA GLÜCK —
É a primeira vez da Selvática em São Paulo. Nós esperamos, assim como esperávamos nas outras cidades, que o público entre em contato com uma obra de teatro que discute o Brasil, suas virtudes e seus defeitos, que reflita, que se observe a si mesmo e que aprenda a não repetir os erros de gerações que hoje estão mortas, mas que, pelo contrário, reviva as boas coisas que essas mesmas gerações nos deixaram. Nós esperamos que a Pauliceia venha desvairar conosco, antropofagizar conosco a nossa leitura curitibana sobre o País, nós esperamos que a terra onde aconteceu a Semana de Arte Moderna veja do que fomos capazes ao longo dos anos, de lá para cá, para o bem e para o mal. Eu sei que isso que eu vou dizer agora pode parecer egoico e até utópico, mas eu sou romântica mesmo, então não tem problema: eu espero poder mudar o mundo para melhor, Miguel, mesmo com essa temporada rápida. Porque ruinzinho do jeito que tá, ele não vai muito para a frente.

"Esperamos que a Pauliceia venha desvairar conosco", diz Leonarda Glück - Foto: Akio Nojima Garmatter

“Esperamos que a Pauliceia venha desvairar conosco”, diz Leonarda Glück – Foto: Akio Nojima Garmatter

Iracema 236ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara
Quando: De 2 a 4/10/2015 (sexta a domingo), às 21h. 80 min.
Onde: Complexo Cultural Funarte SP – Sala Arquimedes Ribeiro (alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos – São Paulo, Tel: 11 3662-5177)
Duração: 1h20
Quanto: Grátis (retirar uma hora antes)
Classificação etária: 16 anos

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