Alexandre Mate: Festivale faz 30 anos como exemplo de incentivo ao teatro

Alexandre Mate - Foto: Bob Sousa

Alexandre Mate – Foto: Bob Sousa

Por ALEXANDRE MATE*
Colaboração especial, em São José dos Campos (SP)

Realmente, estamos vivendo tempos de barbárie. No mundo quase todo e aqui. Cá e lá, todos os dias, acolá e alhures, as notícias que vêm são horripilantes… Alguém, em algum escrito, indignado, teria afirmado que a humanidade não havia sido passada a limpo. Em parte, isso é, significativamente, verdadeiro.

Entretanto, não se trata da humanidade como um todo, mas de pequenas parcelas da população que se consideram donas do mundo (e acabam, mesmo, por ser) e que tudo deve girar para convalidar seus interesses. O que justifica tantas mortes por tiro? Por subnutrição? Para fugir das guerras?

O grande mestre Eduardo Galeano escreveu faz algum tempo o texto Os Emigrantes, Agora; nele, porque nada muda…, temos:

Os náufragos da globalização peregrinam inventando caminhos, querendo casa, batendo em portas: as portas que se abrem, magicamente, à passagem do dinheiro, se fecham em seus narizes. Alguns conseguem passar. Outros são cadáveres que o mar carrega para praias proibidas, ou corpos sem nome que jazem debaixo da terra no outro mundo onde queriam chegar.

Além das injustiças sociais, em sociedades divididas em classes historicamente antagônicas e irreconciliáveis, essa gente que perpetra tantos crimes hediondos contra a humanidade não há de ter tido acesso às linguagens artísticas.

Mario Pedrosa em ensaio antológico, chamado Frade Cético e Crianças Geniais afirma que todos aqueles, quando crianças, se estimulados a criar e a conhecer as artes na escola, provavelmente jamais bateriam palmas aos ditadores histéricos e seus seguidores, jamais cumpririam regras que pudessem machucar ou prejudicar alguém, que veriam a vida como um grande empreendimento ético a transcender a estética.

Exagero ou não, é fato que a arte pode calar fundo no coração de homens e mulheres, e neles fazer desabrochar aquilo que de melhor os molda e constitui.

Um estado que investe em arte, sem dúvida, aposta no processo de educação cidadã da comunidade. Qualquer sujeito que se empenha em criar, está investindo o bem mais precioso de que dispõe: seu tempo. Nesse investimento, parece claro, que cada um confere o melhor de si, em prol de algo que o transcenda e que compreende relação de troca.

A linguagem teatral, praticada de modo coletivo, tende a manifestar cabalmente todos os exageros que habitam nos seres, mas, para se instaurar, precisa de todos em sintonia, mesmo com diferenças. Trata-se de uma espécie de amadurecimento emocional. Verdade que alguns não mudam… que não concedem, mas o que importa agora são aqueles permeáveis e que tem prazer no processo de trocas.

Um legislador progressista e comprometido com questões cidadãs, em tese, é aquele que não esquece o essencial ao viver digno: educação, saúde, alimentação, lazer e cultura.

Festivale completa 30 anos - Foto: Divulgação

Festivale completa 30 anos – Foto: Divulgação

A atual administração de São José dos Campos (PT) tem investido firme na cultura, e acaba de promulgar alguns editais para o teatro no município que prevê um investimento bastante significativo para seus criadores. Com parcerias essenciais na realização da 30ª edição do Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba (Festivale), o evento que ocorre de 2 a 12 de setembro conta com mais de 500 profissionais mobilizados.

Entre espetáculos convidados e selecionados 56 obras fazem parte do grande evento pedagógico-cultural. Pedagógico em razão de todos os espetáculos promoverem debates, com mediação de artistas da cidade: Fernando Rodrigues e Vinícius Torres Machado; pedagógicos, porque, à exceção dos convidados, todos os espetáculos serão alvo de leitura crítica a cargo de três críticos convidados: Alexandre Mate, Kil Abreu e Luiz Fernando Ramos (pelo jornal O Vale ou pelo site da Fundação Cultural Cassiano Ricardo).

Dos 56 espetáculos selecionados, 16 deles são de São José e da região (Vale do Paraíba), correspondendo ao surpreendente número de quase 30% do total; perfazendo um total de 84 apresentações – fora os espaços públicos: parques, ruas e praças –, em outros 15 pontos, em todas as regiões de São José dos Campos.

Formada por Calixto de Inhamuns, Marcelo Denny e Roberto Rosa, a comissão acertou nas obras selecionadas. Até o momento de escrever este texto, no primeiro dia de mostra oficial, tivemos duas obras de São José dos Campos, que tematizaram o universo de Pedro Malasartes e de Nelson Rodrigues; duas da região de São José do Rio Preto, que tematizaram, respectivamente: Cascatinha e Inhana e Mazzaropi; um espetáculo de Brasília, que trabalhou com o universo da palhaçaria.

Recusa encerra programação do Festivale - Foto: Ernesto Vasconcelos/Clix

Recusa encerra programação do Festivale – Foto: Ernesto Vasconcelos/Clix

A programação conta com espetáculos (de 17 cidades e quatro estados), saraus, fóruns de discussão e oficinas, perfazendo um total de mais de 100 eventos nos dias de festival. A curadoria do festival e comissão organizadora foi desenvolvida por Wangy Alves (coordenador), André Ravasco, João Fernandes e Roberval Rodolfo.

Para ter acesso a toda a programação, que é gratuita, basta clicar aqui.

O evento foi aberto oficialmente com o belíssimo I Gaivota – É Impossível Viver sem Teatro, dirigida por Nelson Baskerville e se encerra com o belíssimo Recusa, dirigido por Maria Thaís (13 de setembro, às 21h).

São José dos Campos encontra-se em festa e, muito mais do que os espetáculos e eventos apresentados, os grandes homenageados são os espectadores que podem ter acesso a um significativo conjunto de obras, produzidas por artistas que querem se comunicar espalhando belezas para – além de tantas barbáries – nos sentirmos fazendo parte de um mundo em que a beleza também tem pouso e nos humaniza.

*ALEXANDRE MATE é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) e pesquisador de teatro.

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