Entrevista de Quinta – “Não queremos virar museu tão cedo”, diz atriz e diretora do Grupo Galpão

Lydia Del Picchia: atriz e diretora do Galpão por acaso do destino – Foto: Divulgação

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Com 30 anos de história e o respeito da classe teatral de todo o País, o Grupo Galpão quer saber de cantar.

No musical De Tempo Somos, em cartaz até 12 de julho no Sesc Santana, em São Paulo, os atores de Belo Horizonte entoam músicas que marcaram a trajetória da trupe mais popular de Minas Gerais.

Nesta Entrevista de Quinta, o Atores & Bastidores do R7 conversa com Lydia Del Picchia, diretora do espetáculo na companhia de Simone Ordones e atriz do grupo há duas décadas.

Ela lembra sua formação artística, que começou em São Paulo, ainda menina, da relação com a dança em Belo Horizonte, e de sua entrada repentina para o Galpão, que a abocanhou sem opção de volta.

Leia com toda a calma do mundo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você tem uma formação meio mineira, meio paulista? Como assim?
LYDIA DEL PICCHIA —
Meus pais são músicos, meu pai é violinista e maestro e minha mãe é pianista e educadora. Eles viveram em SP a maior parte da minha infância, onde considero que iniciei meus estudos nas artes, pois tenho muito vivas as lembranças das aulas de musicalização e rítmica na Fundação das Artes de São Caetano do Sul – e de fato elas foram a base de todo meu aprendizado mais tarde. Mas foi quando me mudei para Belo Horizonte, aos 12 anos,  é que pude me dedicar integralmente à dança, no Transf.orma – Centro de Dança Contemporânea. Lá fui aluna, professora, bailarina, assistente artística e coreógrafa, enfim, uma formação bastante diversificada. E tive a oportunidade de trabalhar com vários artistas da dança, da música e diretores de teatro também.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Ser filha de artistas facilitou ou piorou as coisas?
LYDIA DEL PICCHIA —
Bem, no meu caso facilitou, sempre tive o apoio e incentivo dos meus pais e da família para minhas escolhas profissionais.

Lydia (ao centro), em cena do musical De Tempo Somos, do Grupo Galpão – Foto: Guto Muniz

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você estudou música e dança até chegar ao teatro. Qual a importância destas primeiras formações?
LYDIA DEL PICCHIA —
A música foi mais na infância mesmo, e logo depois me interessei pela dança. Estudei no Trans-Forma por dez anos, durante os quais comecei também a dar aulas na escola e participar do grupo. A Nena [Marilene Martins], diretora da escola e do grupo, sempre foi uma artista antenada e à frente do seu tempo. Ela é a grande responsável, não só pela minha formação como artista, mas também de muita gente bacana em BH – Dudude Herrmann, Arnaldo Alvarenga, Lucia Ferreira, Rodrigo, Miriam e Pedro Pederneiras, Paola Rettore, Tarcísio Homem. Ela sempre foi muito criteriosa e cuidadosa em como passava os conteúdos para os professores da escola, em como iríamos conduzir as aulas e o programa. Além disso, pelo Trans-Forma passaram importantes nomes não só da dança, mas de música e teatro como Klauss e Angel Vianna, Ivaldo Bertazzo, Eid Ribeiro, Graciela Figueiroa, Paulo Cesar Bicalho, Rufo Herrera, José Adolfo Moura, Fred Romero, Sônia Mota, Rolf Gelewski, Bettina Bellomo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como eram as aulas?
LYDIA DEL PICCHIA —
Tínhamos aulas de improvisação, composição, didática, rítmica, apreciação musical, enfim, um mundo além das técnicas de dança, e isso abriu o olhar de quem passou por ali. Eu sou atriz integrante do Grupo Galpão desde 1995 e coordenadora pedagógica do Galpão Cine Horto desde 2004, e tenho certeza de que foi essa minha formação que me permitiu o trânsito para o teatro de uma maneira tranquila, é essa experiência que me orienta ainda hoje.

MIGUEL ARACANJO PRADO — Mas quando você entrou no Galpão?
LYDIA DEL PICCHIA —
Entrei no Galpão num momento em que estava querendo dar um tempo do trabalho com a dança, estava me desligando do Grupo 1º Ato, onde estive por três anos, e sem projetos concretos. Aí, na mesma semana, o Eduardo me ligou dizendo que estavam precisando de alguém para substituir a Simone em “A Rua da Amargura”. Ela estava grávida e teria que parar de atuar por uns seis meses. Acho que fui indicada pela Babaya, que fazia a preparação vocal do Galpão e estava também trabalhando com o 1º Ato naquele momento. Eu já havia trabalhado com o Grupo num espetáculo dirigido pela Carmen Paternostro, Triunfo – Um Delírio Barroco, com a Cia. De Dança do Palácio das Artes, onde eu fui assistente durante 10 anos. A gente já se conhecia, tínhamos afinidades. Foi uma delícia fazer aquela substituição, já tinha assistido ao espetáculo na estreia e brinquei com eles dizendo que quando precisassem de alguém poderiam me chamar… Durante a temporada do espetáculo em São Paulo, o grupo decidiu encarar a remontagem do Romeu e Julieta, eu fui convidada a participar também, e acabou que os seis meses viraram 20 anos…

Galpão resolveu recuperar canções que marcaram as três décadas do grupo – Foto: Guto Muniz

MIGUEL ARCANJO PRADO — O que o teatro tem de especial em relação à dança e à música para você?
LYDIA DEL PICCHIA —
Minha formação foi na dança teatro, éramos todos apaixonados por Pina Baush… No Galpão, sempre trabalhamos com a criação dos atores sobre os personagens, ou temas, antes de definir a linguagem/estética que vamos perseguir. Não que a gente trabalhe com técnicas de dança, mas sempre tivemos práticas corporais na criação e manutenção dos espetáculos. Meus companheiros de grupo já sabem que a minha primeira abordagem, seja de um texto, ou de um personagem, vem sempre a partir do corpo, da musicalidade, do trabalho no espaço, essa é uma característica minha, minha maneira de entender o que eu faço. A partir daí consigo me relacionar com os outros atores e propor alguma coisa para o coletivo. Nesse espetáculo que estamos fazendo, De Tempo Somos, que dirigi junto com a Simone, a encenação é toda baseada em jogos de espaço, de dança, me senti muito à vontade para propor coisas ao grupo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você gosta de morar em Belo Horizonte, por quê?
LYDIA DEL PICCHIA —
BH é um ótimo lugar para se morar e trabalhar, e a oferta relacionada à cultura – exposições, shows, espetáculo, teatros e eventos – cresceu muito nos últimos dez anos! Gosto de dizer que BH é uma grande cidade do interior, pois ainda é possível manter relações próximas, cuidar da família, visitar os amigos e aproveitar o que a cidade oferece. E acho que é uma cidade que acolhe especialmente os coletivos de trabalho.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Qual o lugar de BH que você mais gosta?
LYDIA DEL PICCHIA —  Pode parecer que estou puxando a sardinha pro meu lado, mas eu adoro o Galpão Cine Horto, nosso centro cultural em BH. É um lugar de pessoas apaixonadas e comprometidas! Considero ali um lugar de formação importante pra mim, foi onde parei um pouco para estudar teatro, além de que fiz muitos amigos ali, desenvolvi projetos, me perdi e me achei… Outro lugar que adoro em BH é a Avenida do Contorno na primavera – quem conhece sabe do que estou falando – um caminho enorme de ipês amarelos e rosas, lindo demais! Me lembra um tempo que não conheci da Cidade Jardim…

MIGUEL ARCANJO PRADO — E como é estar em São Paulo? Qual sua relação com a cidade?
LYDIA DEL PICCHIA — Adoro São Paulo, sem demagogia! Tenho vários parentes e amigos aqui, e o público de São Paulo no assiste desde sempre, já apresentamos todos os nossos espetáculos aqui, é uma cidade que conhece e acompanha nossa história. Fazer essa temporada do De Tempo Somos em SP está tendo um gostinho especial!

De Tempo Somos está em cartaz no Sesc Santana, em São Paulo – Foto: Guto Muniz

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que você é artista?
LYDIA DEL PICCHIA —
Vixe… Por que macaco gosta de banana? Sempre vivi no meio de artistas, sempre senti na pele a dor e a delícia… A arte me salvou da minha timidez, da minha introspecção, sempre me mostrando novas maneiras de ver o mundo, de enxergar o outro. Não sei, essa pergunta está muito difícil…

MIGUEL ARCANJO PRADO — Então, voltemos a falar de Galpão. Como o grupo lida com o grandioso que ele se tornou? Como fazer para não deixar o nome consagrado diminuir a vontade de inovar?
LYDIA DEL PICCHIA — Nós não pensamos o tempo todo nesse “grandioso”, não dá para construir alguma coisa a partir disso. Sabemos que somos uma referência importante, mas não queremos virar museu tão cedo… Acho que essa referência nos estimula mais em saber que estamos mostrando que é possível fazer e viver de teatro, é possível manter um coletivo de trabalho, podemos nos reinventar, enfim, a característica do grupo de ser um coletivo de atores – e somos 12 – sem um diretor fixo nos permite um movimento constante, as propostas surgem cada hora de uma pessoa, de um lugar diferente. A gente procura sempre olhar para as nossas falhas, para as lacunas, o que gostaríamos de conhecer e desenvolver a cada momento, e são essas dúvidas que nos conduzem para um novo projeto, é a partir daí que vamos descobrir o tema a ser pesquisado, se queremos ir para rua ou para dentro de um teatro, quem vamos convidar para dirigir. 

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que o Galpão é tão querido pelo público?
LYDIA DEL PICCHIA — Acho que tem muito a ver com os espetáculos de rua, com a linguagem popular do grupo, com a preocupação que temos de ser um grupo de pesquisa, mas também em como os espetáculos chegam ao público, com a comunicabilidade deles. O Galpão é um dos grupos que mais viaja pelo Brasil, estamos sempre em turnês não só pelas capitais e Festivais, mas também pelos interiores, e com a longevidade do grupo, temos conquistado um público que nos acompanha, assiste a vários espetáculos, muitas vezes quando nos apresentamos em uma cidade somos procurados por grupos que vem de longe nos assistir porque já nos viram em sua cidade… No De Tempo Somos fazemos uma homenagem ao nosso público dedicando algumas canções para personagens que passaram pela nossa história e que nos marcaram também. Para gente é importante o contato com o público também para além dos espetáculos. Sempre estivemos envolvidos em coordenações de festivais, oficinas, bate-papos, a criação do Galpão Cine Horto em BH é o maior exemplo disso, lá podemos compartilhar nossas ideias e projetos de criação e formação com a cidade.

Galpão é um dos grupos que mais viajam o Brasil com suas peças – Foto: Guto Muniz

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você também trabalha nos bastidores do Galpão? Como é este trabalho executivo no teatro?
LYDIA DEL PICCHIA —
Todos nós do elenco trabalhamos em alguma coisa além da atuação, seja na produção, comunicação, administração, organização do nosso espaço, no Cine Horto… Eu trabalho junto à nossa equipe técnica na logística, juntamente com a produção, e montagens dos espetáculos, camarins, organização da carga dos espetáculos em repertório e do nosso depósito de material, manutenção de cenários e figurinos, tem trabalho ali que não acaba mais e que quem vê o espetáculo pronto nem imagina! Quando estamos em turnês, geralmente o trabalho começa às 8h com a descarga do material no espaço e montagem do cenário, som e luz. A chegada do elenco se dá por volta de três a quatro horas antes dos espetáculos, dependendo se precisaremos fazer teste de microfones ou não. Fazemos um aquecimento corporal, vocal, passagem de som, maquiagem e entramos para o espetáculo. Na maioria das vezes, após o espetáculo desmontamos tudo, carregamos o caminhão e partimos para a próxima cidade, onde começa tudo de novo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que vocês quiseram fazer um musical justo agora?
LYDIA DEL PICCHIA — Na verdade esse é um desejo antigo do grupo. Já em 2000, quando montamos Um Trem Chamado Desejo, a ideia inicial era a gente fazer um pocket show com sambinhas dos anos 40/50 para ser apresentado em espaços menores. Aí a gente quis roteirizar as músicas, surgiram personagens interessantíssimos, convidamos o [Luis Alberto] Abreu para nos ajudar com o roteiro, o Tim Rescala com as músicas… E a coisa evolui para um espetáculo que adoro, mas ficou longe da ideia de pocket. Aí a ideia do musical foi adiada, até agora. No nosso último espetáculo, Os Gigantes da Montanha, temos dois atores/músicos convidados no elenco e apareceu a oportunidade de realizar esse desejo. O Luiz Rocha, um dos convidados, acabou fazendo a direção musical e os novos arranjos das músicas que selecionamos dentro de um repertório desses, pelo menos, 25 anos em que o grupo executa suas trilhas de espetáculos ao vivo. O trabalho com a música sempre foi muito caro ao Galpão.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por quê?
LYDIA DEL PICCHIA — Não só pela comunicação direta que ela tem com a plateia, mas com o que o esforço que tocar e cantar em grupo nos exige, a possibilidade do exercício do coletivo, o desafio de aprender as músicas, cantar a três ou quatro vozes, a atenção e presença que isso nos demanda, tudo isso é agregador ao trabalho do ator que vive em grupo. Não é só pelo resultado, mas pelos benefícios que o processo nos possibilita. De Tempo Somos é um espetáculo muito feliz nesse sentido, nos permitindo rever grande parte da nossa história sem ficarmos presos ao que já fomos. A ideia sempre foi atualizar, apesar de não gostar muito dessa palavra, nosso repertório, e a entrada do Luiz nesse contexto foi fundamental, por não estar apegado aos trabalhos e conseguir dar cara nova a várias músicas. Como diz um das músicas no espetáculo: “Por más que mires el rio que fluye delante de ti, nuca verás las mismas águas”…

De Tempo Somos
Quando: Sexta e sábado, 21h, domingo, 18h. 70 min. Até 12/7/2015
Onde: Sesc Santana (av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana, metrô Jardim São Paulo, tel. 0/xx/11 2971-8700
Quanto: R$ 30
Classificação etária: 12 anos

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1 Resultado

  1. Phillipe disse:

    Lydia é muito fina. Que educação! Que polido de sua parte nominar todos aqueles que, de uma forma ou de outra, foram referências a quem hoje é, também uma referência.

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