Coluna do Mate: Resistências e criações artísticas da periferia, na condição de “zona de fronteira”

Cena da peça Aqui Não, Senhor Patrão, no Núcleo Pavanelli, em São Paulo – Foto: Divulgação

“Todo dia, era dia de índio […] mas agora ele só tem o dia 19 de abril.”
Jorge Ben Jor (Todo Dia Era Dia de Índio)

O pesquisador teatral Alexandre Mate – Foto: Bob Sousa

Por ALEXANDRE MATE*
Especial para o R7

Para se pensar de modo mais amplo e histórico, é preciso buscar os sentidos primeiros e precisos dos acontecimentos. Do mesmo modo, é preciso, também, buscar os primeiros sentidos de origem das palavras. Para desenvolver o tema, busquei alcançar pela pesquisa alguns sentidos históricos, e me lembrei de Carlos Drummond de Andrade, no poema “O Lutador”, que afirma que as palavras esplendem (brilham) “[…] na curva da noite, que todas me envolvem”, portanto, se as palavras brilham, não há de ser pequeno o brilho da palavra periferia.

Nos dicionários a palavra, de origem grega, refere-se a peri, que significa: “acerca, em roda, ao redor”; “em volta, por cima, em cima de”; sobretudo, “ao redor de”. Periferia, do grego periphéreia, tem sentido de redondeza, e, em sentido figurado, representa: “estar fora de caminho direto”; “erro”. Por aí, então, pode-se entender que o sentido da palavra diz respeito a algo fora de algo central, principal. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht, no texto A Vida de Galileu, criou uma cena em que os representantes da Igreja se negavam a olhar um binóculo e comprovar que a Terra não era o centro do Universo. O argumento dos religiosos era o seguinte: Deus teria feito os homens à sua imagem e semelhança. Portanto, admitir que a Terra não fosse o centro do Universo seria conceber, por tabela, Deus como um ente secundário… Realmente, os homens são periféricos (ou errados) em relação a Deus, logo, errados e periféricos, porque marginais.

O teatro na Antiguidade clássica grega apoiou o teatro erudito e expulsou da Ágora (praça principal das cidades-estado gregas) os artistas populares: portanto, o teatro popular, assim como os humanos, nasceu marginal e errado.

O bairro em que você mora está na periferia? Mas, se pensarmos que o Brasil é um país periférico, qualquer bairro, em âmbito aos países centrais, é periférico: os Jardins, Higienópolis, Moema, o centro da cidade, os centrinhos dos bairros distantes ou próximos, dependendo das referências adotadas… é tudo periferia. O Brasil, no que se refere à organização global, obedece e cumpre ordens, de órgãos “de cima”: como a ONU, o FMI, a OMS, o Banco Mundial etc, cujas sedes não estão por perto. Então, é correto dizer, que pelo poder que dispõe, uns poucos países estão no centro. Pensar de outro modo, talvez, como diziam nossas avós, seja conversa mole para boi dormir. Não fosse assim, porque tanto do que dizemos precisa ser dito em inglês?

De fato, o mundo anda mal das pernas, exatamente pela divisão (naturalizada) entre os raros centros e as tantas e incontáveis periferias. Então, novamente com Drummond, agora no poema “Infância”, é preciso entender que nossa história pode ser “[…] mais bonita do que a de Robson Crusoé”.

Artistas (da periferia) nascidos em espaços urbanos com poucos recursos, têm criado obras lindíssimas, que dão o que pensar, senão vejamos:

Emicida (Leandro Roque de Oliveira), em fragmento de Hoje Cedo:

“[…] É rima que cês quer? Toma duas, três
Farta pra infartar cada um de vocês
Num abismo sem volta, de festa, ladainha
Minha alma afunda igual minha família
Em casa, sozinha
Entre putas, como um cafetão
Coisas que afetam
Sintonia
Como sonhei em tá aqui um dia
Crise, trampo, ideologia, pause
E é aqui, onde nóis entende a Amy Winehouse”

Criolo (Kleber Cavalcante Gomes), em fragmento de Não Existe Amor em SP:

“Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever

[…]

São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP

Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu

Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você […]”

Esses e outros autores têm cantado “suas” periferias como muitos artistas eruditos não conseguem, em relação aos seus belos e higienizados centros… Talvez isso ocorra porque eles não se concebam periféricos. Então, se assim for, o centro que eles cantam provavelmente estejam a milhares de quilômetros de onde seus pés, objetivamente, pisam. Lembro, novamente, o texto citado acima de Bertolt Brecht. Talvez o que falte à totalidade dos artistas eruditos seja uma consciência que os periféricos tenham de sua marginalidade, que, nesse caso, significa, também, liberdade.

Cena de espetáculo do grupo Teatro Popular União Olho Vivo, de São Paulo – Foto: Divulgação

Na década de 1980, em obra ligada à teologia da libertação que, dentre outras ações, tomava partido contra o golpe civil-militar brasileiro de 1964, os propositores de “Missa dos Quilombos”, Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra, com músicas de Milton Nascimento, denunciam, por intermédio da obra-missa, o caráter perverso e predatório e as injustiças impostas pela ditadura mencionada. “Missa dos Quilombos” apresenta, na forma de espetáculo cantante, misturando o hierofânico (sagrado) e o profano (aquilo que está fora do templo), parte da luta dos negros no Brasil. Na obra alguns ritos católicos se misturam a expressões manifestas da cultura afrobrasileira. De modo tocante e muito forte, “Missa dos Quilombos” apresenta uma louvação a Xangô (que é o orixá da justiça), e a cultura negra é manifestada pelos toques de jongo, por mitos fundantes do candomblé, pelas danças dos orixás. No ritual de ligação (religare), há participação do Maculelê, da Congada Mineira, do bumba-meu-boi do Maranhão.

Que seja, então, em nome da letra de Nome de Deus, meu tributo a Pedro Casaldáliga e a Milton Nascimento:

“Em nome do Deus de todos os nomes
Javé/ Obatalá/ Olorum/ 0ió.

Em nome do Deus, que a todos os Homens
nos faz da ternura e do pó.

Em nome do Pai, que fez toda carne,
a preta e a branca, vermelhas no sangue.

Em nome do Filho, Jesus nosso irmão,
que nasceu moreno da raça de Abraão.
Em nome do Espírito Santo,
bandeira do canto do negro folião.

Em nome do Deus verdadeiro
que amou-nos primeiro sem dividição.

Em nome dos Três
que são um Deus só,
Aquele que era, que é, que será.

Em nome do Povo que espera,
na graça da Fé, à voz do Xangô,
o Quilombo-Páscoa que o libertará.

Em nome do Povo sempre deportado
pelas brancas velas no exílio dos mares;

Marginalizado: nos cais, nas favelas e até nos altares.

Em nome do Povo que fez seu Palmares,
que ainda fará Palmares de novo
Palmares, Palmares, Palmares do Povo!!!”

Quantas missas mais teremos de fazer? Quantos quilombos terão ainda de ser construídos?

Desde 1999, oficialmente, a produção teatral paulistana tem se transformado e, do mesmo modo, a tudo ao seu redor. Naquele ano, um conjunto de artistas, docentes, intelectuais, interessados no teatro… reúnem-se para retomar a questão essencial de que o teatro é um experimento estético-histórico e social. Tal consciência quanto à necessidade de reunião decorre da chamada mercantilização desenfreada das artes: a arte estava se transformando em mera mercadoria. De modos mais históricos, tal modificação acontecia de modo mais acelerado pelas imposições de Margareth Tatcher e o presidente-ator Ronald Reagan, que impunham internacionalmente a ideologia neoliberal. Os dois dirigentes mundiais, pela crise do capitalismo, impunham novos caminhos e ampliavam as distâncias entre pobres e ricos, destruindo uma série de conquistas da classe trabalhadora, nomeada em inglês de Welfare State (o bem estar social, que compreendia múltiplas conquistas). A partir desses líderes, em artes, era preciso, como em outros momentos históricos, fazer com que a arte servisse aos novos detentores do poder; então, não era possível investir em obras experimentais, contestatórias, inovadoras…

Cena do espetáculo Este Lado para Cima, do grupo teatral Brava Companhia – Foto: Fabio Hirata

Discordantes daquele estado de coisas, parcela da categoria teatral, ao discordar daquelas ordens, promove encontros que serão chamados de Arte Contra a Barbárie. Desses encontros se criou o Programa Municipal de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, no sentido de incentivar a produção teatral do sujeito histórico denominado “teatro de grupo” , ou seja: coletivos organizados de modo coletivo e cooperativo, com obras buscando temas históricos ou épicos, com inserção real em comunidades de que viessem a fazer parte. Transformado em lei, e desde 2002, o projeto tem possibilitado a inúmeros grupos da periferia (agora em sentido mais amplo) a um processo de pesquisa intenso de criação.

Como decorrência desse processo de luta, o teatro inserido em comunidades mais distantes de espaços com grande infraestrutura, tem se transformado, sobretudo por novos modos de produção (cooperativa e colaborativa: interna e externamente) e pelos assuntos que provocam uma expansão e pesquisa do conceito que se poderia denominar aqui de nova forma.

Retomando a questão anterior, o teatro tem feito a lição de casa e instituído verdadeiros territórios teatrais ou quilombos estético-teatrais. Nesses novos espaços (muitas vezes também e carinhosamente chamados de “mocós”), as comunidades locais participam, como artistas, como sujeitos que definem os temas, que participam das tarefas de manutenção, como espectadores críticos… Grupos ditos da periferia usam suas sedes para: encontros teóricos; cursos e oficinas, de diversas naturezas; espetáculos musicais, de dança e performances; saraus; fiestas; mostras ou festivais artísticos etc. Em todas as zonas da cidade, e em perspectiva ampliada, novos grupos de teatro – invariavelmente “filhotes” de grupos fincados em comunidades -, têm surgido e ampliado o panorama artístico-teatral da cidade. Atualmente, tendo em vista a quantidade de grupos e de eventos culturais é impossível a uma única pessoa acompanhar a totalidade de obras em processo de criação e apresentação.

Praça é tomada pela arte no bairro Arthur Alvim, em SP, pelo Dolores Mecatrônica – Foto: Divulgação

Se até determinado momento da história das artes, a produção desenvolvida e apresentada nas periferias (agora usando o conceito ideológico de suposta superioridade de sujeitos, espaços e bairros) não era conhecida por quase ninguém, à exceção daqueles que participavam das ações, hoje, com o processo de ampliação das redes de intercâmbio, o quadro tem mudado substancialmente.

Tem se caracterizado em prática bastante comum aos grupos fomentados promoverem mostras de teatro para que as comunidades espalhadas pelos 1.522 Km. de extensão da cidade de São Paulo. Não fosse por outra questão, este fato de acessibilidade torna o teatro absolutamente popular: como nunca, aliás, no Brasil, ele o foi.

Perto de 300 grupos hoje, na cidade de São Paulo, inserem-se na categoria teatro de grupo. Desse total (e talvez se tenha mais do que esse número), fiz mentalmente uma conta, mais de 100 encontram-se sediados em espaços distintos das quatro zonas da cidade (excluindo aquela que se refere à dita central). O número não é pequeno. Como característica algo comum, a totalidade desses grupos, tem, sim, cantado sua aldeia. Nesse canto, os bairros e sua gente,  seus costumes, seus sonhos e dificuldades têm tido função protagônica, tomando as características do teatro épico (assuntos históricos e não exclusivamente de indivíduos). Portanto, e do ponto de vista estético-político, a organização dos sujeitos da cena teatral (em todas as suas variáveis), no sentido da criação de novas propostas formais e procedimentos relacionais, entre si e com o público, decorre, em grande parte, dos embates e lutas que começam a ser deflagradas durante a década de 1980 contra a ditadura civil-militar brasileira.

Núcleo Pavanelli apresenta o espetáculo Aqui Não, Senhor Patrão – Foto: Divulgação

Nesses tempos de democracia e de conquistas, muitos coletivos, espalhados pelo território que compõe a cidade de São Paulo, têm alegrado e conscientizado as gentes com pouco acesso às manifestações culturais. Nesses tempos de periferia, é preciso cantar e entender o conceito de Zona de Fronteira (versos da música composta por Wally Salomão, Antônio Cícero e João Bosco):

“Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Oba
De um continente por se descobrir

Já/ Alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar
De um território que está por explodir/ Sim
Mas é preciso ser sutil/ Pois justo na terra de ninguém/ Sucumbe um velho paraíso
Sim, bem em cima do barril/ Exato na zona de fronteira/ Eu improviso o Brasil.

Rei/ Sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Oba
De um continente por se descobrir

Já/ Alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar
De um território que está por explodir
E/ Minha cabeça voa assim/ Acima de todas as montanhas e abismos/ Que há no país
Mas algo chama a atenção/ Ninguém jamais canta duas vezes uma mesma canção.”

*ALEXANDRE MATE é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) e pesquisador de teatro. Ele escreve sua Coluna do Mate no blog sempre no primeiro domingo de cada mês.

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