Crítica: Elenco de Puzzle potencializa discurso desesperançado sobre o Brasil de Felipe Hirsch
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Enviado especial do R7 a Santos*
Felipe Hirsch é inteligente, inventivo e contestador. E é importante que o diretor faça seu teatro com toda a liberdade possível. A obra que o representa no Mirada 2014, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, é parte de seu projeto Puzzle (quebra-cabeça, em inglês). Nome que o público custa a pronunciar, como observado durante o evento. Talvez comece daí sua provocação.
Até o momento, o projeto é divido em quatro distintos espetáculos. O último deles, a parte D, foi apresentada no lançamento do Mirada, em agosto passado, no Teatro Sesc Santos, e atacou o nacionalismo e a construção de uma identidade cultural latino-americana de forma visceral, mas nem por isso incontestável.
Em um dos atos, por exemplo, Puzzle D minimiza a língua portuguesa, enquanto o próprio texto comete um erro gramático contra ela, conjugando no plural o verbo haver no sentido de existir. O erro, isolado, soou complicado no contexto de quem quer ser dedo na ferida.
Outro momento tenso é quando o texto demoniza apenas os muçulmanos, como se fossem os únicos a promover a guerra na Palestina, esquecendo-se dos bombardeios de Israel. Ao se posicionar de um lado, perde força contestatória.
Fora isso, o espetáculo é repleto de momentos fundamentais, como aqueles que questionam o ufanismo demasiado de grande parte da Nação Verde-e-amarela.
Desesperança
Mas falemos de Puzzle A, que é o espetáculo oficialmente na programação do Mirada. Trata-se de um compilado de discursos de múltiplos autores, sempre com um ar de desesperança sobre a realidade brasileira.
O caos apresentado pela peça é compartilhado por qualquer um estupefato com o limbo do pensamento livre neste País.
Os artigos são repletos de ironia refinada e ganham potência teatral, sobretudo, por se valerem de alguns dos melhores atores do teatro brasileiro atual, escalados para dizerem os textos com toda a verdade possível e, por isso mesmo, tornando-os desconcertantes.
Hirsch foca no Rio de Janeiro, cidade mergulhada no caos há muito tempo e parece que não sairá dele tão cedo, entregue à disputa eterna entre milicianos e traficantes, com políticos corruptos no meio e polícia violenta que desconhece os direitos humanos.
O diretor aponta seu espetáculo, sobretudo, para a realidade deste lugar, representante do País no exterior, desconstruindo a imagem de paraíso associada à Cidade Maravilhosa.
Policial burro
O ator que mais se destaca é Rodrigo Bolzan, no melhor dos textos, na pele de um policial que discorre sobre sua burrice violenta que o leva a infringir torturas desumanas à população pobre. O ator faz a cena com domínio, levando a plateia a diversas emoções em poucos instantes, do riso ao ódio. Contudo, tal cena incorre em algo perigoso: culpa o povo, pobre e negro em sua maioria, por sua própria desgraça. Tal reducionismo a enfraquece.
A peça conta com uma verdadeira constelação do teatro nacional: Eric Lenate, substituindo Felipe Rocha de última hora, leu com propriedade seu texto, mas nem por isso deixou de imprimir atuação carismática ao discorrer sobre nossas desgraças, transformando-as em dados positivos.
Outro destaque é Luna Martinelli, uma das atrizes de peso da nova geração, que vive a dor de uma mulher cujo amante a abandonou. Seu discurso é traduzido simultaneamente para o alemão, por ninguém menos que Georgette Fadel, referência do teatro paulistano, e para o castelhano, por Javier Drolas.
Colocar o ator argentino para falar em seu idioma é um ato de inteligência do diretor, que sabe respeitar a expressividade natural do ator, colocando-o no espetáculo em lugar de igualdade com seus companheiros brasileiros.
Magali Biff, mais ao fim da obra, é uma verdadeira explosão. E das boas. A peça ainda tem Isabel Teixeira, Luiz Päetow e Jorge Emil. Todos dando peso a cada palavra dita.
Choque de realidade
Com uma estética de impacto tal qual a tinta preta no papel branco, Hirsch faz bem em descontruir a imagem cordial e otimista do brasileiro. Seu espetáculo é um choque de realidade, expondo com crueza o que muitos de nossos governantes tentam esconder. Este é seu maior mérito como artista.
Entretanto, algo incomodou este crítico, e com profundidade, ao fim do espetáculo. E não foi o problema que o elenco teve para rasgar os papéis do fundo do cenário, muito menos com a legenda que não funcionou durante boa parte da peça.
O lugar do negro?
O problema é com o epílogo audiovisual final: uma bandeira do Brasil invertida surge no meio de duas imagens fortes: à esquerda, um vídeo mostra um homossexual negro e desdentado lendo com muita dificuldade a Constituição Brasileira, expondo seus artigos que não são respeitados sequer pelo próprio Estado; à direita, imagens de corpos também negros requebram.
Tal visão, com negros como alegorias da imbecilidade nacional, é complicada e perigosa. Até porque não há negros no elenco – uma atriz negra de peso, como Grace Passô, teria feito bem à obra.
Por mais que este possa não ter sido o objetivo do diretor, o que esta crítica acredita, tais imagens finais podem ser interpretadas como afirmação de um pensamento ainda presente no Brasil, que culpa negros e mestiços pelas mazelas do País. Um discurso racista e inaceitável.
Leia a resposta do diretor Felipe Hirsch para esta crítica
*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Sesc São Paulo.
Leia a cobertura do R7 no Mirada
Curta nossa página no Facebook!
Leia também:
Saiba o que os atores fazem nos bastidores
Que lamentável que haja a demonização dos palestinos na peça! Para qualquer fato, há sempre duas versões. Que decepcionante! Sem comentários.
Parabens pela critica. Senti o mesmo desconforto.
Obrigado, Marcelo. O diretor do espetáculo escreveu um texto fazendo um contraponto, publicado também no blog. Aqui segue o link:
http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/2014/09/10/felipe-hirsch-responde-a-critica-de-puzzle-no-mirada/
O texto do policial burro foi excessivamente agressivo e injusto, uma generalização como as que a peça condena. O bandido no texto é visto como esperto. Pra variar, a exaltação do bandido herói e esperto. Quando forem assaltados e sua família for morta, vão pedir para bandidos espertos ou algum traficante salvar esses intelectuais de m…