Crítica: Por Acaso, Navalha expõe dureza sem saída

Bárbara Salomé como a prostituta Neusa Sueli na peça Por Acaso, Navalha – Foto: Ronaldo Dimer

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Todo mundo, quando nasce, traz consigo, pelo menos hipoteticamente, um mar de possibilidades. A prostituta Neusa Sueli sabe disso muito bem. Contudo, ao longo das escolhas e também das reais possibilidades da vida, nem sempre as coisas caminham para o rumo sonhado.

Muitas vezes, diante do passo errado, fica impossível voltar a outro caminho, tamanho o mergulho na dura realidade do presente.

Por Acaso, Navalha, peça dirigida por Fernando Aveiro e produzida por Camila Biodan com a Cia. Caxote a partir do texto Navalha na Carne, escrito em 1967 pelo jornalista e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), traz o desespero da consciência de onde a vida termina, mesmo que a morte ainda esteja distante. Até ela chegar, há uma longa e degradante espera.

O público que entra no teatro-instalação Espaço Mínimo, já se depara com um ambiente trôpego ao subir as escadas. O tom soturno é rodeado por espelhos, ruídos e bonecos. Quase vivos, quase mortos.

Triângulo mostra a decadência da vida bandida – Foto: Ronaldo Dimer

Logo na entrada, os personagens estão ali, diante do espelho, à espera de ganharem vida. A cada degrau, surge uma memória de um tempo irrecuperável, até que o público chegue ao quarto de Neusa Sueli, onde se dá a encenação.

A direção acerta ao ambientar tudo em um quarto de verdade, onde fica clara a derrota cotidiana de Neusa Sueli, prostituta já no fim da carreira ingrata. No espelho, a frase escrita com batom “Isto NÃO é teatro” provoca o público, enquanto espera que os personagens subam as escadas e comecem tudo. Merece elogio o trabalho da diretora de arte Rosângela Ribeiro e do artista plástico Pedro Farled na ambientação.

No quarto, o espectador, mais do que olhar pelo buraco da fechadura, adentra como fantasma àquele ambiente de desespero.

É lá que Neusa Sueli é submetida aos desmandos violentos e cruéis do cafetão Vado. E também é lá que entra em peleja constante com o travesti Veludo, amigo e inimigo ao mesmo tempo.

O trio de atores está coeso, mas ganha maior força no decorrer da peça. Apesar do naturalismo proposto pela encenação, cada qual apresenta proposta distinta.

Bárbara Salomé constrói uma Neusa desesperançada, imersa no vício e no limbo ao mesmo tempo. A atriz começa mais dura, até que começa a transitar entre fantasia e realidade ao trazer consigo a dor vinda do concreto que nem a droga consegue deter. Neusa precisa de amor, mas não tem. E nem terá. E o pior: sabe disso. E a atriz deixa isso bem claro em sua atuação.

Murilo Inforsato começa com uma construção caricata para seu Vado. Mas, ao longo da encenação, vai tomando as rédeas do personagem e conquistando sua verossimilhança. Ele cresce, sobretudo, a partir do enfrentamento com o travesti Veludo, ganhando a crueldade necessária para a parte final da obra.

Humberto Caligari se destaca como o travesti Veludo em Por Acaso, Navalha – Foto: Ronaldo Dimer

Humberto Caligari faz de sua rápida, porém fundamental participação, como o travesti Veludo, o melhor momento da peça, quando se estabelece um triângulo, humano e baixo. O ator mistura empáfia, segurança, deboche e, sim, muita masculinidade em sua construção. Assim como o Cintura-Fina de Mateus Nachtergaele, na minissérie Hilda Furacão, seu travesti tem uma teatralidade pungente. Diante de um personagem que é caricato por si só, o ator prefere ficar no mínimo e se sobressai.

Por Acaso, Navalha mostra que Plínio Marcos ainda é contundente e atual. E que a vida continua a ser bandida com muita gente. E que não queremos (ou podemos?) arcar com as desgraças alheias. Por isso, tanta indiferença cotidiana.

Se muitos por aí conseguem dar reviravoltas e se reinventar, a outros o fundo do poço parece não ter escapatória. É uma dureza sem saída. O silêncio inescrutável no quarto após a saída derradeira de Neusa Sueli deixa isso claro de uma forma dilacerante.

Por Acaso, Navalha
Avaliação: Bom
Quando:
Segunda, 21h (última sessão). 60 min. Até 4/8/2014
Onde: Espaço Mínimo (r. Barão do Bananal, 854, Vila Pompeia, São Paulo, tel. 0/xx/98919-2773)
Quanto: R$ 30
Classificação etária: 16 anos

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1 Resultado

  1. Phillipe disse:

    Para quem tem a possibilidade de se reinventar, que bom! Mas, como corretamente destacado no texto, muito verdadeiro sem ser piegas, nem todos têm essa chance. A estes, cabe uma postura menos julgamental e um pouco mais generosa.

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