Crítica: Cartas a Madame Satã é delicadeza artística

Sidney Santiago em Cartas a Madame Satã: última sessão neste domingo (15) – Foto: Roniel Felipe

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Debaixo de chuva e à noite, um jovem grita da rua por seu amor no alto de um edifício. O desespero do jovem apaixonado é comovedor. A plateia acompanha seu apelo compungida, em silêncio.

Alguns vizinhos do teatro se interessam por aquele jovem. Saem na janela, ao alto, e acompanham o desenrolar daquele pedido apaixonado.

Contudo, o amor não surge, não vem. A plateia é, então, convidada a entrar no teatro, onde encontra no palco o quarto daquele rapaz, que permanece ainda lá fora, sem pestanejar em sua convicção de ser ouvido em algum momento. E amado.

Cartas a Madame Satã ou me Desespero sem Notícias Suas é a terceira peça da trilogia Dos Desmanches aos Sonhos, da Cia. Os Crespos, formada por atores saídos da EAD (Escola de Arte Dramática) da USP (Universidade de São Paulo).

Em pauta, no palco, a afetividade, a negritude e o gênero. Tudo misturado em potência poética. Aquele jovem lá fora e que agora chega ao palco é negro. E homossexual.

Em um instigante e potente cenário, mérito de cuidadosa e propositiva direção de arte de Antonio Vanfill, há aparelhos televisores que multiplicam tudo, a fala e as emoções. Pós-moderno o ator se grava e se exibe, dando potência a seu discurso neste mundo que exige a representação tecnológica para que algo seja concreto, por mais absurdo que isso possa parecer.

Sidney Santiago Kuanza no palco – Foto: Roniel Felipe

O jovem é vivido pelo ator Sidney Santiago Kuanza. O personagem  descortina seus sonhos, seus traumas, seus medos, seus desejos e até seus desaforos.

O ator é carismático, talentoso. Navega em desafiantes nuances sem perder o vigor, tampouco a credibilidade. Consegue ganhar o público para si logo nos primeiros momentos da obra, monólogo que ele tira de letra.

Seu personagem se corresponde com Madame Satã, o lendário boêmio da Lapa, no Rio, no século passado. Uma espécie de ídolo em sua vida libertária e contestatória do que tudo está dito e tido como correto e caminho a ser seguido. Ao tomá-lo como ídolo, o personagem faz sua revolução. Nem que seja por cartas apenas.

Lucélia Sergio faz direção sensível, embalando o personagem e construindo imagens de força estética, com a ajuda de adereços empunhados pelo ator, que vão propondo o andamento da obra.

Algumas situações, como quando Santiago repete a figura mestre de cerimônia, exigindo boa noite sonoro da plateia, perdem força quando reiteradas. Há situações cuja força maior reside em serem únicas.

Mas isso não chega a prejudicar o todo da obra. O público parece convicto em acompanha junto do ator as fragmentadas histórias daquele personagem múltiplo, na dramaturgia assinada por José Fernando Azevedo. Na diversidade ele revela realidades possíveis e o público se identifica em algum momento.

A peça brinca desavergonhada com tabus, dando naturalidade aos mesmos a partir da exposição artística sem uso do pudor ou do exagero. E age politicamente expondo a negação do outro, transformado apenas em simples objeto sexual de obrigação viril, como repetidas vezes é o caso do homem negro em nossa sociedade.

Cartas a Madame Satã faz isso com delicadeza artística que não agride, nem espanta, muito pelo contrário, conscientiza, trazendo uma nova percepção possível e transformadora.

Cartas a Madame Satã ou me Desespero sem Notícias Suas
Avaliação: Muito bom
Quando: Domingo, 18h. Única apresentação em 15/6/2014
Onde: Galeria Olido (av. São João, 473, centro, metrô República, São Paulo, tel. 0/xx/11 3331-8399)
Quanto: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia)
Classificação etária: 12 anos

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3 Resultados

  1. Phillipe disse:

    Este “post” eu li com cuidado. Porque já li a entrevista do Kuanza aqui no blog (e, apesar de discordar dele em alguns pontos, reconheço o bom trabalho que realiza) e porque você definitivamente tem crédito para falar sobre qualquer peça teatral que seja abordando as questões relacionadas à negritude. Até o presente momento, creio que você seja o crítico teatral que mais dá espaço ao artista negro, seja ator, diretor ou de qualquer outra função. Vários de seus “posts” abordam o assunto. Essa sua atitude é até pedagógica, pois você concede ao artista negro a visibilidade que vários entrevistados negros disseram (em entrevistas ao blog) entender como inexistente ou não suficiente. Então, realmente se tem alguém com crédito para falar sobre o enfoque acerca da negritude em alguma peça, esse alguém é você (se tem outro crítico teatral tão aguerrido quanto a este tópico, eu sinceramente desconheço). Aliás, penso até que sou a primeira pessoa a reconhecer esse fato por escrito no blog.

    • Miguel Arcanjo Prado disse:

      Phillipe, você é o leitor número um deste blog. Sempre educado, inteligente, propositivo. Então, um reconhecimento vindo de você, é sempre um motivo de grande alegria para mim. Forte abraço!

  2. Onorath Fukui disse:

    Parabéns Miguel, gosto demais da forma que você escreve, em breve estaremos em cartaz com o espetáculo Ousadia, quero muito lhe enviar o convite para você ir lá nos prestigiar.
    Um grande abraço.
    Onorath Fukui.

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