Entrevista de Quinta: “É traumático para o negro ir ao teatro”, diz Sidney Santiago Kuanza, do Crespos

Sidney Santiago em cena da peça Cartas a Madame Satã ou me Desespero sem Notícias Suas, do grupo Os Crespos, em cartaz em São Paulo – Foto: Roniel Felipe

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Fotos de RONIEL FELIPE

O ator Sidney Santiago Kuanza é articulado, fala com propriedade e inteligência. Mas sempre com doçura. Seu discurso, apesar de aguerrido, jamais é chato. Muito pelo contrário, em sua argumentação, é impossível não concordar com tudo o que ele diz.

Paulista do Guarujá e morador da Bela Vista, no centro de São Paulo, ele integra o grupo teatral Os Crespos, surgido na Escola de Arte Dramática da USP (Universidade de São Paulo), trupe que já conquistou admiradores no Brasil e no mundo.

Atualmente, o grupo está com três peças em cartaz em três diferentes espaços da metrópole. Todos integram o projeto Dos Desmanches aos Sonhos – Poética em Legítima Defesa. No enredo das peças Além do Ponto, Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas e Cartas a Madame Satã ou me Desespero sem Notícias Suas, surgem questões pertinentes do homem e da mulher negra no Brasil contemporâneo.

Sidney Santiago Kuanza, que já esteve na Alemanha e também em Angola, conversou com exclusividade com o Atores & Bastidores do R7 nesta Entrevista de Quinta.

O ator já foi destaque na televisão, como na novela Caminho das Índias (Globo), na qual fez o elogiado personagem Ademir, que sofria de esquizofrenia. Entretanto, o lugar onde assume seu discurso com toda a potência é mesmo o palco. Não poderia ser de outra forma.

Leia com toda a calma do mundo.

Cartas a Madame Satã… se inspira no boêmio personagem da Lapa, no Rio – Foto: Roniel Felipe

Miguel Arcanjo Prado —Como surgiu o grupo Os Crespos?
Sidney Santiago Kuanza — Surgimos na EAD [Escola de Arte Dramática da USP], onde todos estudamos. Sempre entram 20 alunos na EAD. No meu ano, em 2005, pela primeira vez na história, dos 20 aprovados cinco eram negros.

Miguel Arcanjo Prado —Antes não era comum aluno negro na EAD?
Sidney Santiago Kuanza — Não. Até porque nem a EAD nem a USP jamais abriram espaço para qualquer ação afirmativa. Existe aquela história de que a EAD não quer formar ator para fazer papel de escravo na TV. De toda forma, ainda é uma escola elitista. Até porque exige dedicação em tempo praticamente integral, é difícil para quem precisa trabalhar. Por isso, quem estuda artes no Brasil geralmente pertence às classes mais favorecidas.

Miguel Arcanjo Prado — Como vocês foram recebidos?
Sidney Santiago Kuanza — Além dos cinco negros que entraram em 2005, em 2006 vieram mais quatro alunos negros. Ou seja, passaram a existir novos corpos na escola e, de alguma forma, estrangeiros àquela realidade.

Miguel Arcanjo Prado — Vocês se juntaram como questão de resistência?
Sidney Santiago Kuanza — Foi. Porque nas aulas não havia menção à importância do negro no teatro. Então, o grupo [de alunos negros] propôs à escola estudarmos a importância do negro nas artes brasileiras. Era uma proposta para todos: alunos, mestres, funcionários. Fazíamos saraus, debates.

Miguel Arcanjo Prado — E como foi a acolhida?
Sidney Santiago Kuanza — Por um acaso, só os alunos negros se interessaram pelo projeto. Chamava-se Negros em Questão. Uma pena. A formação do ator na EAD ainda é eurocêntrica. Aprende-se teatro grego, russo, alemão e até americano, mas ninguém fala da África. Nem na Ásia.

Temática do negro no palco: Os Crespos – Foto: Roniel Felipe

Miguel Arcanjo Prado — Que tristeza…
Sidney Santiago Kuanza — As pessoas precisam entender que a herança negra é de todos os brasileiros. O brasileiro branco também tem herança do negro. Fizemos o projeto por dois anos e, em 2007, resolvemos montar nosso grupo de teatro, Os Crespos, com os nove estudantes negros da EAD.

Miguel Arcanjo Prado — Qual a sensação que vocês tinham em não ouvir nada sobre o negro durante a formação?
Sidney Santiago Kuanza — Ninguém na universidade fala da origem africana de nosso teatro. A sensação de um aluno negro é que o sistema de ensino lhe negligencia. Tentamos propor para a grade curricular da escola que fossem inseridos nomes negros que foram de importância fundamental em nossas artes, como o Benjamim de Oliveira, nosso primeiro palhaço brasileiro, ou mesmo o Grande Otelo, o maior nome de nossa comédia. O diretor da época na EAD, o Celso Frateschi, nos deu apoio, mas a estrutura era muito complicada…

Miguel Arcanjo Prado — E o José Fernando de Azevedo, que é negro e hoje é diretor da EAD? A gestão dele melhorou essa questão do negro na escola?
Sidney Santiago Kuanza — É um problema estrutural. Ele é um homem negro, é comunista, e tem consciência desse problema. Mas a gestão dele ainda não trouxe mudanças quantitativas. O fato é que ele é o diretor, mas a estrutura ainda é arcaica. O Zé, como homem, é comprometido com essa bandeira, mas em termos de gestão, a estrutura permanece a mesma.

Miguel Arcanjo Prado — Por que não se fala da importância do negro no teatro?
Sidney Santiago Kuanza — Olha, no século 18, quem fazia teatro no Brasil eram os negros e mestiços. Porque era mal visto fazer teatro e brancos não atuavam. Era uma coisa degradante. A partir do século 19, quando artistas europeus do teatro passaram a se apresentar no Brasil, aí, sim, brancos começaram a fazer teatro. Mas, antes, tivemos quase um século e meio de teatro feito por negros que ninguém fala.

“Cerca de 85% do público de nossas peças são de negros”, diz Sidney Santiago Kuanza – Foto: Roniel Felipe

Miguel Arcanjo Prado — Como o grupo Os Crespos foi recebido pelo público e pela classe artística?
Sidney Santiago Kuanza — Nosso primeiro diretor foi o alemão Frank Castorf. Estreamos na montagem dele Anjo Negro, na pesquisa sobre Nelson Rodrigues e Heiner Müller, em Berlim. A montagem tinha também grandes nomes de nosso teatro, como Georgette Faddell e Roberto Audio.

Miguel Arcanjo Prado —E quando voltaram para o Brasil, qual público encontraram?
Sidney Santiago Kuanza — Em nossas primeiras apresentações, ainda na universidade, 90% do público era branco. Depois, foi mudando. Hoje, 85% de nosso público são de negros, pessoas que se identificaram com nossa proposta.

Miguel Arcanjo Prado —Por quê?
Sidney Santiago Kuanza — No teatro, assim como em boa parte das artes brasileiras, o negro geralmente é o outro, o perigoso, o invisível, o cômico ou o sensual. Ele sempre está na chave do estereótipo. É traumático para o negro ir ao teatro.

Miguel Arcanjo Prado —Por quê?
Sidney Santiago Kuanza — Porque o negro quase sempre vai ao teatro para não se ver ou, pior, se ver de uma forma que não gostaria de ser visto.

Miguel Arcanjo Prado — E qual é o papel dos grupos teatrais negros, como vocês e também o Coletivo Negro, neste contexto?
Sidney Santiago Kuanza — Os grupos negros trazem pluralidade para o palco. Partimos da história não-oficial, porque a história oficial negligencia a história do negro.

Miguel Arcanjo Prado —E como a imprensa e a crítica reage a vocês?
Sidney Santiago Kuanza — Conseguimos atenção da imprensa. Até da Bárbara Heliodora já escreveu sobre nós. Contudo, ao analisar nossa obra, os críticos sempre partem de um viés sociológico, como se o artístico fosse irrelevante. A gente fica na sinuca de bico de ser tratado apenas como um objeto sociológico, com o produto artístico sempre em segundo plano.

Miguel Arcanjo Prado —Na televisão é difícil ser um ator negro, porque quase nunca há bons papeis fora do estereótipo escravo-empregada. O que eu considero o horror. Também é difícil ser ator negro no teatro?
Sidney Santiago Kuanza — O teatro de São Paulo já teve uma temporada com 750 peças em cartaz. Dessas, apenas 25 tinham atores negros, o que corresponde a 3% do total. E isso em uma cidade onde 36% da população são negros. Em números absolutos, São Paulo tem mais negros do que Salvador ou Nova York.

Miguel Arcanjo Prado —Há preconceito com os grupos teatrais negros?
Sidney Santiago Kuanza — Tem gente que se incomoda, olha para nós como se fôssemos revanchistas. Acham antiquado trazermos uma pauta que eles já consideram “ultrapassada”. Dizem que a angústia do negro já foi superada.

Miguel Arcanjo Prado —E foi?
Sidney Santiago Kuanza —Não. Basta olharmos as estatísticas. Qualquer estatística negativa é encabeçada por negros: a do desemprego, a de morte de jovens, a de moradores de favelas, a do subemprego… Além disso, não somos representados positivamente nos meios de comunicação. Quando você é negro no Brasil, alguns atos de violência contra você são permitidos e não recebem punição. Estamos longe de acabar com o racismo.

“O audiovisual brasileiro ainda é racista”, diz Sidney Santiago Kuanza, do grupo Os Crespos – Foto: Roniel Felipe

Miguel Arcanjo Prado — A TV tem de se abrir mais para o artista negro?
Sidney Santiago Kuanza — Claro. O audiovisual, infelizmente, é muito racista ainda. Muitas vezes, a TV incute na cabeça do negro que ele não pode ter sonhos. Porque em uma novela, de uma centena de personagens, geralmente só tem três atores negros, e em papeis de empregados, sem direito a ter filho, família ou história própria. É muito retrógrado. Geralmente, quem escreve novela vive neste universo racista e o reproduz. Acho que o Brasil precisa pensar ações afirmativas no audiovisual. Ironicamente, a TV da Alemanha  ou da Suíça é mais negra do que a TV brasileira.

Miguel Arcanjo Prado —Por isso vocês levam questões do negro para o palco?
Sidney Santiago Kuanza — Sim, estamos trabalhando agora a afetividade, que é política também. Outro dia a Folha escreveu que tínhamos largado a política para falar de afeto. Como se isso não fosse político também… O afeto tem impacto na sociedade. Usamos de referência a autora norte-americana Bell Hooks, que é ótima. Nossas peças falam da afetividade em relações heterossexuais, homossexuais, tanto de mulheres quanto de homens negros. Queremos denunciar este lugar de invisibilidade social que o negro ocupa. Os atores negros não servem só para abrir e fechar portas em cena.

Miguel Arcanjo Prado — E de onde vocês tiram forças para resistir?
Sidney Santiago Kuanza —Fazemos parte de uma geração que, mesmo com tanto problema atualmente, é privilegiada em relação a seus pais. Nós pudemos estudar e trabalhar com o que sonhamos, mesmo com todas as dificuldades. O teatro para mim é o lugar de resistência, onde ainda é possível sonhar. Venho de um lugar de desespero, onde a esperança e a crença na mudança é o que nos mantêm vivos. Embora exista um forte corrente contra, as coisas vão mudar, sim. A gente tem de acreditar.

Sidney Santiago Kuanza e seu grupo, Os Crespos, lutam por maior presença do negro nas artes – Foto: Roniel Felipe

Os Crespos
Temporada Espaço dos Fofos
Quando: Cartas a Madame Satã ou Me Desespero sem Notícias Suas (Dias 21, 22 e 26/5/2014; quarta, quinta e segunda, 21h; 25/5/2014, domingo, 19h); Além do Ponto (23/5/2014, sexta-feira, 21h); Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas (24/5/2014, sábado, 21h)
Onde: Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista, São Paulo, tel. 0/xx/11 3101-6640
Quanto: R$ 15 (inteira) e R$ 7 (meia-entrada)

Temporada Centro de Formação Cultural Cidades Tiradentes
Quando: Além do Ponto (6/6/2014, sexta-feira, 20h30); Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas (7/6/2014, sábado, 20h); Cartas a Madame Satã ou me Desespero sem Notícias Suas (8/6/2014, domingo, 19h)
Onde:
Rua Inácio Monteiro, 6.900, Cidade Tiradentes, São Paulo, tel. 0/xx/11 2555-2810
Quanto: Grátis

Temporada Galeria Olido
Quando: Além do Ponto (13/6/2014, sexta, 20h); Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas (14/6/2014, sábado, 20h); Cartas a Madame Satã ou Me Desespero Sem Notícias Suas (15/6/2014, domingo, 18h)
Onde: Av. São João, 473, metrô República, São Paulo, tel. 0/xx/11 3397-0171
Quanto: Grátis

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6 Resultados

  1. Osmar Camara disse:

    Nós negros temos que lutar para mudar a nossa imagem, realmente somos retratos no mundo artistico como empregados, bandidos, etc. Mas a arte imita a vida e quando ocuparmos lugares de destaque na sociedade, seja como empresário, executivo, jornalista, médico, advogado… , será dificíl o meio artistico nos ignorar, ou nos subestimar.
    Acredito que a mudança irá acontecer assim que a maioria de nós negros começarmos a nos impor e assim mostrar a todos a nossa capacidade.

    • Miguel Arcanjo Prado disse:

      Osmar, muita coisa mudou, felizmente, e negros já começam a ocupar papeis importantes na sociedade. Contudo, parece que a teledramaturgia está um pouco cega a estas mudanças e prefere repetir velhos paradigmas, infelizmente. Forte abraço e obrigado por comentar!

  2. Phillipe disse:

    Li com bastante atenção a entrevista de Sidney Kuanza. Concordo com muito do que ele falou, porém discordo de alguns trechos. Acho que a invisibilidade não é só para o negro, mas também para o homossexual. E, especificamente em relação ao homossexual, é comum existir um prejulgamento de que todo homossexual deve ser (frise-se: de acordo com a cabeça de alguns, não de todos) uma pessoa promíscua. E não é verdade. Há pessoas promíscuas ou não, sejam elas héteros, homossexuais ou de quaisquer outras orientações sexuais. Em relação à teledramaturgia – já que Televisão também foi citada -, gostaria de destacar a importância histórica de Taís Araújo. Salvo engano, ela foi a primeira atriz negra a ser protagonista de telenovelas no Brasil. Diz-se comumente que isso teria ocorrido em DA COR DO PECADO (2004), mas creio ser um erro, pois ela já havia sido protagonista antes, em XICA DA SILVA (1997).

  3. Fabio disse:

    E aí, eu, ator e negro, fico numa sinuca de bico: entre a separação (teatro de negros e teatro de brancos) e a ação. Por que num grupo de brancos, quando se é o único negro, claro que pensam em você pra ser o ridículo, o inusitado, a empregada, a mucama, o escravo. E claro, te vêem com outros olhos, e você nunca vai se esquecer de que é negro (aliás vai ser lembrado disso o tempo todo). No entanto, por que não um teatro multiétnico como o próprio Brasil é? É nessas horas que vemos o nosso apartheid velado, quando para atuar temos que construir um espaço por que o espaço existente não se abre. Lembro de ir a testes e nem fazer o teste por que “não tinha o perfil”. Ou de ter o meu currículo olhado com extrema desconfiança, como se eu estivesse mentindo. E deixo sim esse relato, por que nesse momento da minha história, nem sei mais se sou ator ou não. Por que me entristece, embora me alegre, que nós negros tenhamos o nosso teatro com as nossas questões. Não são questões humanas? Não deveriam ser, ao menos?

    • Miguel Arcanjo Prado disse:

      Fabio, falou tudo. Sonhemos com o dia em que negros não sejam tratados com tantos estereótipos e possam atuar em qualquer personagem, na TV, no cinema e no teatro. Aquele abraço!

  4. Carlos Henrique disse:

    Obrigado pela entrevista, Miguel.
    Concordo com tudo o que o Sidney falou. O trabalho dele é muito importante e ainda bem que ainda existem alguns com força para lutar por visibilidade e propondo uma discussão necessária.

    Para o cara que disse que “nós negros temos que lutar para mudar a nossa imagem” , só tenho a dizer que o problema não é a “imagem que os negros fazem”, mas é a maneira que a sociedade olha para nós negros. E a sociedade brasileira olha SEMPRE com pré-julgamentos e preconceito.

    Não acredito em mudança, mas torço por aqueles que acreditam.

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