Crítica: O Duelo produz instantes sublimes de teatro
Por Beth Néspoli*
Especial para o Atores & Bastidores
Vi O Duelo, da mundana companhia, no Centro Cultural São Paulo. Minha experiência como espectadora leva-me a dizer: se você teve vontade de ver e hesitou devido à longa duração (3h20), atravesse essa barreira e vá correndo, porque a temporada está no fim.
No teatro, às vezes, experimenta-se simultaneamente o envolvimento emocional e/ou racional com a ficção e prazer propiciado pela observação dos procedimentos criativos. Há muitos momentos assim em O Duelo.
Num deles, o grupo consegue instaurar com poucos elementos o intenso frescor do banho de mar, com direito a mergulho e natação, compartilhado pelas mulheres interpretadas por Camila Pitanga e Carol Brada.
Toda a ação transcorre na região do Cáucaso, em uma Rússia quente e litorânea e, nessa cena, o espectador não apenas é tocado pela situação ficcional, na qual a leveza do momento de lazer contrasta com a peso das emoções veladas da personagem vivida por Camila, como pode deleitar-se com as soluções cênicas criadas para colocar no palco o mar e seus fluxos.
Em outro momento do espetáculo, discreto estímulo sonoro, coreografia precisa que beira à imobilidade e algumas poucas palavras são elementos mobilizados para convocar a imaginação do espectador na criação de um amplo cenário.
O silêncio denso que se segue produz um daqueles instantes sublimes de teatro em que sentimos o próprio corpo plantado no presente e, ao mesmo tempo, transportado para a ficção. Experiência para ficar na memória.
O Duelo diverte o espectador, sem nada ter de frívolo. Mais do que isso, é encenação relevante para o momento histórico vivido no Brasil, esse nosso tempo em que ‘a ferro e fogo’ deixou de ser apenas uma metáfora para disputas de pensamento.
O tradicional duelo, com padrinhos e pistolas se faz presente, mas passa ao largo do motivo banal e não se restringe ao momento específico em que dois homens empunham armas.
Em jogo está um embate de visões de mundo que atravessa todo o espetáculo. Em uma das pontas um homem em crise existencial (Aury Porto) flagrado num momento de passagem e muitas dúvidas. Abandonou um modo de ser, mas ainda não se apropriou do que quer vir a ser.
Na outra ponta, um cientista determinado e pleno de certezas (Pascoal da Conceição). Para mediar o constante duelo entre eles Tchekhov cria um personagem (Vanderlei Bernardino), não por acaso um médico como ele próprio o era, que respeita diferenças e aposta no diálogo.
Já as partes em conflito só conseguem ver duas soluções para suas diferenças: o afastamento geográfico ou a eliminação do oponente. Não é um teatro de tese. O que acompanhamos no palco são atos de gente em seu cotidiano. E a abordagem não é coral. É atravessando subjetividades e relações interpessoais que Tchekhov trata da sociabilidade.
O homem em crise é de origem aristocrática e deixou a cosmopolita São Petersburgo para viver no distante Cáucaso, com sua mulher (Camila Pitanga) que, por sua vez, ousou abandonar o marido para se lançar na aventura. Porém dois anos depois – é quando tem início a narrativa – ambos se sentem entediados e solitários.
Cada cena do espetáculo está repleta de pequenos duelos, alguns com desdobramentos terríveis, muitos originados da oposição entre o comportamento do casal e os hábitos conservadores da distante província.
A linguagem do drama – mesmo que quebrado por procedimentos épicos como faz a mundana companhia – exige intérpretes com domínio técnico para dar forma não estereotipada a emoções e sentimentos múltiplos e contraditórios.
Nesse quesito é inegável a qualidade do conjunto de atores de O Duelo e não raro aquele já citado duplo prazer é proporcionado pela atuação do elenco. Por exemplo, na cena que poderíamos chamar de duelo final entre a mulher vivida por Camila Pitanga e seu opressor, o policial interpretado por Sérgio Siviero que a assedia sexualmente, é possível estar a um só tempo em estado de comoção pela tragédia iminente e apreciar o investimento criativo conjunto de atores e direção.
Uma miríade de sentimentos é trazida à tona por meios de recursos como o movimento corporal da atriz que oscila entre o vergar-se e o aprumar-se, a modulação da sua voz e a manipulação do figurino. Tudo na sua atuação converge para intensificar a atmosfera de impotência da presa que no breve instante que antecede a captura faz as últimas tentativas para escapar.
Do lado do predador, em vez do esperado gesto curto e reto da força bruta, Siviero opta pelo movimento sinuoso e por botes curtos, o que amplia em muito a densidade do momento. O desenho final contribui para ressaltar a opressão sobre o feminino como questão cultural grave.
Embora situado na Rússia de dois séculos atrás, o espetáculo diz muito sobre os nossos tempos. O Duelo fica em cartaz no CCSP até o dia 15 de dezembro de 2013. Não deixe de ver.
*Beth Néspoli é jornalista especializada em teatro e doutoranda em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo).
O Duelo
Quando: Quinta a domingo, 19h30. 210 min. Até 15/12/2013
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, metrô Vergueiro, São Paulo, tel. 0/xx/11 3397-4002)
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada)
Classificação etária: 12 anos
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Obrigada, Miguel, pela publicação e pelas palavras gentis. E parabéns por seu trabalho permanente de acompanhamento da cena teatral. Nós apaixonados por teatro sabemos o quanto esses espaços são relevantes para criadores e espectadores e o grau de investimento afetivo e dedicação que exigem de quem os mantêm. Mais uma vez parabéns e obrigada.
Beth, ter você no blog é uma grande honra. Volte sempre! Sou seu fã de carteirinha!!!
Obrigada. Beijo