Coluna do Mate – Mulheres como minoria no teatro?

Kim Hunter, Marlon Brando (abraçados, à esquerda) e Jessica Tandy (à dir.) em Um Bonde Chamado Desejo, em 1947, na Broadway; o autor, Tennessee Williams, escreveu grandes personagens femininos – Foto: Divulgação

Quem, um dia, vai pagar o pathos por mais esta ideológica e bizarra condenação?

Alexandre Mate: Foto: Bob Sousa

Por Alexandre Mate*
Especial para o Atores & Bastidores

Prólogo

Mês passado, escrevi sobre o travestimento: homens fazendo personagens femininas no teatro. Neste texto, agora, e de modo histórico, vou comentar sobre o aparecimento das mulheres nos palcos.

Atualmente, mais do que nunca, porque esta é uma questão que está na ordem do dia, é preciso pensar sobre as diferenças de gênero…

Se sexual e socialmente, ao longo da história, homens e mulheres têm sido apresentados como diversos que se completam, culturalmente as diferenças têm sido absolutamente apresentadas, separando aqueles destas.

Escolas e contextos históricos diferenciados tendem a retratar as mulheres, às vezes, de modo a desqualificá-las. No teatro erudito, por exemplo, as atrizes ganham o palco somente no século 17, enquanto que, nas tradições populares, desde sempre, as mulheres participaram dos espetáculos…

Teatro já foi uma espécie de Clube do Bolinha no qual mulheres não entravam – Foto: Divulgação

Assim, das inúmeras oposições entre o teatro popular e o erudito, a linguagem teatral, quando não misógina, caracterizou-se em Clube do Bolinha, no qual a mulher, de fato, não entrava!

Primeiro ato

Em um de seus belos poemas (O que quereis?), Wladimir Maiakovisky afirma que: “O mar da história é agitado!” Essa agitação, metaforizando o viver concreto, tem sido, ao longo da história, muito maior para as mulheres. Elas – e não apenas em teatro, uma vez que para os gregos, sobretudo no século 5 a.C. (e, de lá para cá, será que as coisas mudaram tanto) – junto aos escravos, estrangeiros e crianças eram consideradas seres inferiores.

Necessitadas da tutela permanente do Estado, e como no mito de Sisifo: trancafiadas em casa e condenadas às tarefas cotidianas, as mulheres figuram idealizadamente nos documentos histórico-culturais como heroínas e deusas, mas não como mulheres! O aristocrático Aristófanes escreveu comédias significativas protagonizando mulheres, mas, e por exemplo, Lisístrata, em excelente tradução de Millôr Fernandes, depois de conseguir terminar com uma guerra, a líder do movimento, que propôs como tática e arma a greve dos sexos, recebe o marido, ajoelhando-se, subservientemente diante dele!

– Adélia Prado, mulher-poeta, “cantou”: “Minha mãe cozinhava exatamente arroz, feijão roxinho e molho de batatinha. Mas cantava”.

Voltando àquele tempo primeiro, dito de criação do berço ocidental, as mulheres não podiam atuar e sequer assistir às comédias: que eram consideradas inferiores em relação às tragédias.

Substituídas por homens travestidos, heroínas paradigmáticas povoaram tragédias e comédias encenadas: Medeias humanas enfrentaram, em versões diferentes, traições, preterições, legisladores e desterros; Antígonas humanas, defendendo a tradição (para além do prestar libações aos mortos), pagavam a desobediência com o suicídio, os aprisionamentos e tantos outros dilaceramentos, do vier… Seus destinos, entretanto, não figuram da documentação histórica.

– Marina Colasanti, mulher-escritora em Na primeira mulher:

Hoje, dia da mãe, eu própria me deixo envolver pelo logro dos comerciantes, pelo engodo da propaganda, e me olho, mãe, procurando meus sentidos. Hoje, dia de mim, da mãe que me pariu, das filhas que eu pari, pertenço à raça das mulheres de ancas fortes que forjam a longa corrente do tempo. […]

Eu mãe de minhas filhas mães. Eu filha da minha mãe filha. Eu igual à mulher que veio antes de mim e à que me segue. Eu forma. Eu forno. Eu força da vida.

A fundadora do Kabuki, Izumo no Okuni- Foto: Reprodução

Entre ato

Num longo corte. Japão, 1586, uma dançarina sagrada, para angariar dinheiro para reforma de um templo, apresentou um tipo de balé que deu origem ao Kabuki. Apesar dessa origem, e até hoje, as mulheres não podem mais participar dessa dança, apresentada, magistralmente, é verdade, por homens.

Na Ópera de Pequim, também é assim, à mulher cabe apenas servir de modelo para os homens que apresentam as personagens femininas e assistir ao modo como elas são vistas e concebidas por homens: que desde crianças são preparados, por outros e velhos homens (que, em tantos casos, tem uma imagem da mulher).

Como já mencionado, pelo menos no concernente às artes, na tradição popular, as mulheres não têm sido tão segregadas e expulsas do templo representacional. Feminino idealizado? Mulher parceira? Homem-feminino?

Às mulheres-tão-sentimento que habitam a mulher, Chico Buarque de Hollanda compôs:

“Moças feito passarinho, avoando de edifícios”; “Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando, pelo avesso. Então, ela se fez bonita como há muito tempo não podia ousar”; Vivo de biscate, queres que eu te sustente, se eu ganhar algum vendendo mate, dou-te uns badulaques de repente”; “De tudo o que é nego torto, do mangue ao caís do porto, ela já foi namorada”; “vou chegar a qualquer hora ao meu lugar/ e se uma outra pretendia um dia te roubar/ dispensa essa vadia/ eu vou voltar/ vou subir/ a nossa escada, a escada, a escada, a escada/ meu amor eu, vou partir/ de novo e sempre, feito viciada/ eu vou voltar”.

Segundo ato

Na Inglaterra, depois de momentos de glória para o teatro e para os atores homens, os Puritanos, em 1642, conseguem expulsar, não as mulheres, mas a atividade teatral da vida londrina.

Enterrado por decreto: cena do teatro elisabetano no filme Shakespeare Apaixonado – Foto: Divulgação

Enterrado por decreto, o deslumbrante teatro elisabetano leva consigo Ladys e Macbeths, Catarinas amansadas por Petruchios, Julietas e Romeus…, um “vermezinho” chamado Willian Prynne além de conseguir a proibição teatral, dentre tantos outros absurdos, afirmava, também, não passarem de prostitutas todas as atrizes francesas, e impôs sua patológica misogenia e ódio não só às mulheres, mas ao teatro e seus artistas.

Então, a partir dessa realidade, a luta redimensiona-se. O velho preconceito contra os artistas, parido, sobretudo, por clérigos nefandos e doentes do período medieval, foi reeditado por decreto! Mesmo na autodenominada cidade-luz, ao morrer, Molière não teve o direito de ser enterrado no dito solo sagrado de cemitério! Coube-lhe, depois de algumas gestões dos artistas junto aos nobres, ser enterrado do lado de fora do muro…

Marina Lima cantou magistralmente uma música “tola” em cujos versos se ouvia: “Você precisa de um homem pra chamar de teu/ mesmo que este homem seja eu”; Adriana Calcanhoto, inspiradíssima, dizia prestar muita atenção ao que seu irmão ouvia; Cássia Heller, sempre emocionada, de modo mais escondido sob a aparência de mulher arrojadíssima, leva aos prantos os fracos e sensíveis, como ela, em “[…] quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas”: lindas e intensas mulheres… muito mais do que criadoras de versos e músicas… Criaturas de um tempo de tantos seres partidos!

Presidente Getúlio Vargas obrigou atrizes a se submeterem a exames ginecológicos regulares – Foto: Divulgação

Reedições do preconceito contra as mulheres, artistas ou não, reaparecem todos os dias. O ditador Getúlio Vargas, tentando criar uma sociedade eugênica – cujos modelos vinham, sobretudo, da Itália fascista e da Alemanha nazista –, expulsou mendigos das ruas, pobres das praias, eliminou os adversários e obrigou determinadas artistas, sobretudo as do teatro de revista, por ele “visitadas”, a submeterem-se, junto a prostitutas a exames ginecológicos regulares! Algumas delas lembram em carteirinhas rosas (a mesma cor que os nazistas impuseram aos homossexuais…).

Pois é, e aqui a luta se redimensiona novamente, basta que se lembre, mas não exclusivamente, o que ocorre nas Delegacias de Mulheres. Toneladas de exames de “corpo de delito” de mulheres atacadas por homens que se dão ao direito (e a lei os protegem, não é mesmo!?), contra suas namoradas, mulheres, parceiras, vizinhas, parentes… Eles batem, batem, dão uma correção, lembram quem é o macho do terreiro e de quem é a vontade que vence! E batem, e corrigem, e são presos, mas liberados em seguida, rapidinho.

Então, como se pode depreender disso, mulheres padecem também porque o sistema social, erigido, construído e administrado por homens excluem-nas, do mesmo modo como o fazem com os pobres!

Outra mulher-poeta Cora Coralina, que açucarou tantos suores e lágrimas derramadas, legou:

“Não sei… se a vida é curta ou longa demais para nós, Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas..

Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, Braço que envolve, Palavra que conforta, Silêncio que respeita, Alegria que contagia, Lágrima que corre, Olhar que acaricia, Desejo que sacia, Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja, nem longa demais, Mas que seja intensa, verdadeira, pura… Enquanto durar.”

Cena de Commedia dell’arte: as atrizes faziam papeis de criadas e enamoradas – Foto: Pintor desconhecido

Entre ato

Antes de a commedia dell’arte ir à França, no século 17, as atrizes apresentavam-se nessas companhias fazendo os papéis de das innamorate (enamoradas) e das astuciosas zerbinete (criadas).

Na França, apresentando-se não mais nas ruas, mas nos palácios, elas perderam muito de sua graça e beleza para se duplicarem em número e expor partes de seus corpos para atender aos desejos dos homens. Esse mesmo fenômeno ocorreu, já no início do século 20, em duas formas-práticas teatrais distintas: o teatro de revista e nas serate dos futuristas.

Mais ou menos na mesma época, e por interesses distintos, o teatro apresenta e vende a imagem da chamada mulher-objeto.

Cena de teatro de rua no Festival de Curitiba: homens e mulheres têm mesmo tamanho – Foto: Erika Zanatta

Cartaz com função épica

No teatro apresentado na rua, homens e mulheres, personagens masculinas e femininas costumam ter o mesmo tamanho. Talvez pelo fato de o teatro popular ter, exatamente, a estatura do mundo: o deslimite. Nele, a construção de grades e de quartas paredes é quase impossível, pela irreverência e pela epicização que intenta a imaginação.

Terceiro ato

As idealizadas heroínas românticas, injustiçadas nas sociedades gerocêntricas (poder do velho), alcançavam a redenção por intermédio da morte. A boníssima e pia Leonor de Mendonça de Gonçalves Dias, à semelhança de Desdêmona de Othelo, tem sua vida estrangulada pela misogenia de D. Jayme, menos por desconfiança de ela tê-lo traído, mas para livrar-se do fardo de estar casado com ela.

Embalado pelos interesses do Estado na louvação do ideário burguês, na França de 1843, por meio de editos premiantes, com patrocínio e espaço de representação oferecido pelo Estado, nas plagas brasileiras, José de Alencar e, sobretudo, Joaquim Manuel de Macedo, criaram personagens e situações moralistas dignas de figurar, de modo paradigmático, nos manuais de “bom-mocismos”. Do segundo autor, Macedo, a personagem Hortência, de Luxo e Vaidade, leva o marido a perder-se pelas aparências da ostentação e se caracteriza apenas em um exemplo disso.

Denise Fraga em A Alma Boa de Set Suan – Foto: João Caldas

De ardilosas e virtuosas Lucrécias em A Mandrágora, do preceptor de Príncipes, Maquiável; Shen Te/Shui Ta de A Alma Boa de Set Suan, do admirável Bertolt Brecht; passando por desiludidas três irmãs em Tchekhov; Nora, com a dissolução dos ideológicos e perversos valores do mundo burguês, em Casa de Bonecas de Ibsen; ganhando os discursos monofônicos nos monólogos: A Vinda do Messias de Timochenco Wehbi, A Bolsinha Mágica de Marly Emboada de Carlos Queiroz Telles, Quase Bibelô de Flávio de Souza, Apareceu a Margarida de Roberto Athayde, a dramaturgia contemporânea tem apresentado o feminino de modo entusiasmado e em permanente oposição aos juizes-defensores/advogados-carceireiros que, consoante aos interesses daqueles detentores do poder em voga, têm cumprido exemplarmente seu papel.

Jorge Andrade tem uma dramaturgia centrada em mulheres fortes, práticas e objetivas, da qual Marta é sua alegoria maior; Nelson Rodrigues, como se sabe, cria-as de modo “dadivoso” e quase sempre próximo ao patológico; Oswald de Andrade torna-as iconoclastas e transitando entre extremos: Plínio Marcos patetiza-as, porque frutos de uma sociedade desigual, predatória, excludente; Dias Gomes mostra-as vitimas de todo tipo de interesse, à vezes de seus mesmos…

Cartaz com função épica

Por que será que a gente quase nunca busca o pai para chorar e expor nossos problemas? Responder aqui com o clássico: porque a sociedade é machista e a educação cabe a mãe não responde nada!

Epílogo

Mulheres magistrais com almas atormentadas e aprisionadas, em: Lorca, Tennessee Willians, Brecht (Os fuzis da Sra. Carrar); mulheres que defendem o estômago para “caçar”, se for o caso, a moral depois, exemplares em: Neusa Sueli, de Navalha na Carne e a viúva Luckerniddle em Santa Joana dos Matadouros.

“Odete Roitman, próxima de seu fim, ganhou todas as primeiras páginas dos jornais” – Foto: Divulgação

Soffredini que trouxe para uma comunidade paulistana Mafalda: induzida à morte por uma comunidade moralista e defensora da fachada-ideia de defesa da família, tão Doriana, como nas propagandas. Romana que segura a onda, que orienta o marido caso seja preso; Maria de Bella Ciao, que abandona o homem amado por medo de jamais saber se voltará à noite para casa. Mulheres que esperam permanente. Tantas mulheres, todas as mulheres do mundo!

Odete Roitman, próxima de seu fim, ganhou todas as primeiras páginas de ditos sérios jornais. Parecia tratar-se de uma pessoa de verdade!

Foi preciso inventar as revistas gay para que os homens pudessem aparecer pelados para as mulheres? Uma das três garças oswaldianas em O Homem e o Cavalo, lamenta-se pelo fato de ter-se conservado virgem toda a vida, uma vez que no céu não há sequer uma maçaneta onde ela pudesse se roçar.

*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador de teatro e integra o júri do Prêmio Shell de Teatro. Ele escreve no blog sempre no dia 1º.

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2 Resultados

  1. Felipe disse:

    Favor corrigir a legenda da foto, pois o autor é Williams e não Willimans. Mero erro de digitação.

  2. Felipe disse:

    Marlon interpretou também no cinema esse papel. E o papel da beldade sulista coube à lindíssima Vivien Leigh, premiada com seu segundo Oscar.

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