Coluna do Mate: Teatro paulistano transforma sujeitos marginais em protagonistas da vida

Operários, de Tarsila do Amaral: São Paulo tem duas estreias teatrais por dia – Foto: Reprodução

A cena teatral paulistana, que estreia dois espetáculos por dia em média, traz para o protagonismo da cena os sujeitos à margem da história oficial

Alexandre Mate: Foto: Bob Sousa

Por Alexandre Mate*
Especial para o Atores & Bastidores

É quase inacreditável o número de espetáculos sendo apresentados em São Paulo. Em análise recente, José Cetra Filho, cujo mestrado sobre recepção foi defendido no Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisou os espetáculos em cartaz e, dentre outras afirmações, e chegou à conclusão que mais de dois espetáculos estreiam por dia na cidade.

Nessa informação, o pesquisador apresenta tal informação ao pesquisar materiais documentais mais tradicionais, como roteiros de jornais, programas de espetáculos e guias de teatro. Desse modo, é seguro que o número se amplia, na medida em que os espetáculos apresentados em bairros, normalmente, não aparecem nas fontes documentais citadas.

Em razão do exposto, sabem todos os pesquisadores e interessados em teatro que o número de obras ligadas à linguagem a que se tem acesso é sempre inferior àquele, de fato, existente.

Atualmente, e decorrente de um conjunto de ações de luta e de militância dos artistas, a cidade de São Paulo concentra o maior número de produções na área teatral do país. Em pesquisa recente por mim realizada, a pedido de professora da Universidade do Texas, apresento o nome de quase 300 grupos de teatro em atividade na cidade. Tais grupos atuam nas cinco zonas da cidade, muitos deles com ações conjuntas e com resultados bastante singulares.

Do número total de grupos em atividades na imensa cidade paulistana, pode-se afirmar que a maioria apresenta seus espetáculos com temas retirados de assuntos interessantes à cidade. Isto é, poucos são os espetáculos cujos assuntos dizem respeito exclusivamente às questões individuais. Tal manifestação ocorre porque interessa aos coletivos que compõe os grupos as experiências sociais que abrigam conjunto de sujeitos e, também, pelo fato de os textos decorrerem de processos improvisacionais e coletivos. A partir de tal realidade, o texto final resulta de um conjunto de visões e pontos de vista diversos.

Assim, não interessa à maioria dos grupos em atuação efetiva, o protagonismo de uma de uma personagem individual. Assim como na vida social, o viver não se restringe aos sujeitos isolados. Mesmo aquele que se isola carece e depende de um conjunto de outros. Portanto, todas as ações humanas têm naturezas de abrangências sociais amplas, algumas vezes singulares, mas dependentes do todo.

Compreendem os grupos de teatro com espetáculos significativos que o viver significativo e digno compreende processos de luta para a conquista de tantos direitos e promessa apartadas da maioria absoluta das pessoas.

Desse modo, não há e nem interessa organizar um espetáculo para apresentar o protagonismo de um indivíduo, que luta exclusivamente por e para si. Interessa apresentar o indivíduo e as causas sociais que o impedem da conquista de seus sonhos, direitos, desejos… Interessa apresentar o sujeito que sonha e aqueles que impedem de realização do sonho.

Nessa medida, a totalidade dos grupos teatrais da cidade de São Paulo, preocupa-se com problemas de natureza social: as múltiplas formas de exploração de amplos setores da população; a espetacuralização da vida pelos meios de comunicação; a crônica e permanente falta de justiça social; a tendenciosidade da justiça que atende àqueles que dispõem de recursos econômicos; a falta de moradia; os capengas sistemas sociais, compreendendo os escolares, de saúde pública etc.

Em razão desse amplo espectro que envolve a maioria, o chamado drama absoluto, que trata das mazelas individuais não interessa. Interessa ao chamado teatro de grupo da cidade, os assuntos sociais amplos e seus embates. Desse modo, os espetáculos são épicos porque lidam com assuntos de natureza histórico-social, em narrativas divididas em episódios distintos e articulados, nos quais pontos de vista diferenciados são contrapostos e investigados.

Assim, como na vida, às vezes somos protagonistas, mas, outras tantas, apenas “figurantes”. Nas narrativas episódicas, em cada episódio pode-se apresentar protagonismos diversos. Portanto, nas obras coletivas, que compreendem a criação do texto e a construção da cena, há funções protagônica distintas.

Mário de Andrade, no final da década de 1920, tomando tantas outras experiências anteriores, criou Macunaíma, na condição de o preguiçoso herói sem caráter, correspondendo às contradições do homem comum.

O teatro de grupo, atendo-se às experiências anteriores na literatura e nas artes, tem trazido à cena, dividindo o protagonismo histórico-social, a gente que sempre esteve à margem na história. Vinícius de Moraes escreveu o poema Os Inconsoláveis”, no qual no último verso aparecia: “aves acorrentadas pelos pés”, a maioria do teatro de grupo tem trazido para a cena e libertado esse tipo de águia.

Barafonda interage com o bairro da Barra Funda (SP) para contar sua história – Foto: Bob Sousa

O grupo de teatro de rua Buraco d’Oráculo (com sede na zona leste da cidade) apresenta atualmente, em vários espaços públicos da cidade, o espetáculo A Ópera do Trabalho, trazendo o trabalhador e a trabalhadora para a cena; a Companhia São Jorge de Variedades (com sede na zona oeste, próxima ao centro) apresenta o surpreendente espetáculo Barafonda, apresentando em mais de 4 quilômetros de deslocamento, a gente da Barra Funda e todos aqueles que andam pelas ruas do bairro; a Brava Companhia (com sede na zona sul) apresenta em diversos pontos da cidade o seu espetáculo Este Lado para Cima, apresentando o que fazer com relação aos privilegiados que vivem em uma bolha sustentada pela classe trabalhadora; também sendo apresentada em vários pontos da cidade, o Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo (com sede na zona norte) apresenta o espetáculo Aqui Não Senhor Patrão, dividindo a cena e os protestos com relação ao patronato com a população que assiste ao espetáculo; o Grupo Parlendas (que ensaia em espaço ocupado na zona leste), decorrente de viagem por quatro regiões do país, apresenta, em chave de alegoria ao humano, o espetáculo Marruá, palavra cujo significado diz respeito ao boi que se desgarra da boiada e que passa a lutar e a se defender dos instrumentos de tortura e de aprisionamento; a Companhia Antropofágica (com sede na zona oeste) tem apresentado intervenções com máquinas (carroças e bicicletas) e cenas de teatro de revista e músicas em longas jornadas pelas ruas da cidade, misturando de modo crítico o pior e o melhor da música.

Teatro de graça, apresentado nas ruas e espaços públicos; teatro que permite que os espectadores, que passam ou que ficam para assistir a toda a obra possam apresentar seus pontos de vista com relação à obra.

Nessa perspectiva, se a obra épica é construída a partir de pontos de vista diversos, sua função, na condição de uma experiência estética e social, se completa durante a apresentação. Desse modo, a gente que passa pela rua, que, de fato, construiu a cidade e que motivou a construção da obra, pode, também, falar na obra que é sua e que lhe espelha.

Como se dizia antigamente, o teatro de grupo da cidade – principalmente aquele que tem buscado a rua para facilitar o acesso de amplas camadas da população à linguagem teatral -, tem feito sua lição de casa. Em nossos trajetos pela cidade podemos nos surpreender com um espetáculo teatral, podemos nos repensar, nos entender, nos reaproximarmos.

Por último, não é à toa que tanta gente recentemente saiu de casa para apresentar e registrar publicamente, e em coro, seus protestos contra a vida que nos tem sido imposta em séculos: o teatro de grupo da cidade também se fez presente nesses protestos.

Manifestación, de Antonio Berni: grupos teatrais participam dos recentes protestos – Foto: Reprodução

*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador de teatro e integra o júri do Prêmio Shell de Teatro. Ele escreve no blog sempre no dia 1º.

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