Teatro Contadores de Mentira: 20 Anos de Recusa

Cena da peça O Incrível Homem pelo Avesso, do Contadores de Mentira: resistência teatral em Suzano (SP) - Foto: Divulgação

Cena da peça O Incrível Homem pelo Avesso, do Contadores de Mentira: resistência teatral em Suzano (SP) – Foto: Divulgação

Nota do Editor: O Teatro Contadores de Mentira celebra neste 2015 20 anos de história. Sediado em Suzano, na Grande São Paulo, o grupo escolheu dialogar com a periferia e nunca deixou de enfrentar problemas, muitas vezes perseguido por membros do poder público. Mesmo assim, segue adiante, de cabeça erguida, focado no teatro que acredita, dialogando com o povo ao seu redor e conquistando o respeito da classe artística e da sociedade. O texto a seguir foi feito por seu diretor como parte das comemorações.

Por CLEITON PEREIRA*

Fazer um teatro que se ocupe da raiz histórica, que se ocupe da natureza humana, que seja capaz de negar e criar rupturas sociais certamente traz consequências devoradoras. Olhar-me como fundador de um grupo que completa 20 anos e ainda nele conseguir enxergar tanta potência é um extremo entre realização e medo. Convivemos numa cidade que o poder público é uma meia verdade. Convivemos numa cidade oprimida e opressora. Em 20 anos de grupo tentamos achar sentido, mas de fato respiramos a ausência e a utopia. São 20 anos optando em não fazer êxodo para a capital e, portanto lutando em movimentos que olham para o interior e as periferias. São 20 anos furando bloqueios, saltando muros inimagináveis. Como um grupo como o nosso, numa cidade periférica e dolorosa, pode ter tanta consistência? Como um grupo como o nosso mantém tantas tradições, rupturas, deslocamentos, saltos, coragem?

Contadores de Mentira estão em atividade desde 1995 pisando em terras inóspitas cuja pressão de uma região coronelizada poderia facilmente destruir qualquer ação ou movimento cultural. Essa força contrária é o que nos move e nos motiva a existir. Se sob a pressão da política local mantemos um galpão mantido às nossas próprias economias e ali depositamos nossa energia é porque o caminho mais duro também nos dá posição, militância, politização e vontade de que aquilo que produzimos possa também contagiar outros ao nosso redor. Entendemos que nossas constantes reviravoltas e guerras não são mudanças, mas uma maneira de dialogar com o tempo para proteger a própria identidade, uma estratégia para interrogar a História e proteger nossa própria existência.

Teatro junto com o povo: Contadores de Mentira dialoga com a periferia - Foto: Divulgação

Teatro junto com o povo: Contadores de Mentira dialoga com a periferia – Foto: Divulgação

Fazemos nosso teatro por necessidade humana, e antes de tentar transformar o mundo tentamos transformar a nós mesmos. Temos por princípio a recusa e o que nos move ainda são recortes, imagens, pequenas fraturas, e a consciência de nosso “caminho”. O que nos move são as mesmas questões que poderiam nos condenar à impotência criativa. Uma cidade como Suzano precisa de beleza. Foi devorada por grupos políticos e por uma política de balcão que viciou artistas, pensadores, cidadãos. Todas as possibilidades de crescimento de um grupo de teatro pareciam improváveis há poucos anos atrás. Percorremos um caminho torto, tomamos nossas decisões, fizemos nossas guerras, enfrentamos nossos monstros e somos cobrados por nosso próprio histórico enquanto defendemos um assentamento. E se não há alimento para todos, porque somos pobres, cabe a nós semear, lutar por políticas públicas, por conhecimento e acesso. Cabe a nós destituir o poder de quem nos oprime. Cortar a cabeça do Ditador. Tudo o que fazemos é público, portanto dedicamos muito tempo ao povo.

Nosso corpo teatral é talhado por cicatrizes e cortes profundos, criamos muitas guerras ao longo do caminho para manter a utopia de uma liberdade e de não ceder ao “negócio”. Sentir o tempo tocando nossa espinha dorsal e fragilizando nosso corpo é um processo que só resistimos porque pensamos em grupo. O que fazemos ainda é uma relação de encontro entre seres humanos e este espaço está cada vez menor, porém, não cedemos.

Fazer teatro de grupo significa recusar o caminho fácil, significa não destruir seus semelhantes, significa aprender a lidar com o corpo e tempo do outro. Significa não correr e respeitar quem anda devagar. Significa estar a serviço de um ofício cruel, doloroso e gozoso. O êxtase de um grupo com mais de 20 anos é o encontro com a própria dor.

Escrevemos muito em nosso próprio corpo para não esquecer e enraizamos conhecimento desenvolvido como técnica apurada. Essa experiência acumulada foi maturada passo a passo. Escrita no vento antes mesmo de conseguir papel e lápis. Deuses e demônios nos atacam todos os dias, quebram nossos corpos e sussurram em nossos ouvidos muitos de seus segredos. Alguns estão guardados em nossas veias e músculos, outros estão escritos em papel de pão. Logo atearemos fogo.

*CLEITON PEREIRA é fundador e diretor do Contadores de Mentira.

Acompanhe a programação do Teatro Contadores de Mentira

Grupo Contadores de Mentira faz um teatro aguerrido e pensante - Foto: Divulgação

Grupo Contadores de Mentira faz um teatro aguerrido e pensante – Foto: Divulgação

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